A morte da menina Heloysa Gabrielle, há um ano, expôs o avanço da criminalidade na praia de Porto de Galinhas, um dos principais cartões-postais de Pernambuco. E a realidade pouco mudou.
No centro de Porto de Galinhas, a movimentação de turistas pelas ruas e no comércio permanece intensa e sem incidentes que chamem a atenção. Mas há um contraste no seu entorno. Uma facção especializada no tráfico de drogas continua praticando homicídios de rivais, impondo medo às famílias que vivem na comunidade de Salinas (e outras próximas) e lucrando alto com a venda de entorpecentes às pessoas que visitam a praia.
Policiais ouvidos em reserva pela Coluna Segurança, deste JC, contam que o líder da facção foi preso, numa operação realizada no ano passado, e encaminhado a um presídio federal. Mas outro criminoso, ainda mais violento, assumiu o posto. "Ele assumiu o controle, tomou bocas de fumo e a violência não diminuiu", diz um dos relatos.
Em Ipojuca, onde a praia de Porto de Galinhas está localizada, sete mortes violentas foram registradas nos dois primeiros meses de 2023. Mas o número pode ser maior, já que os policiais relatam que estão em investigação casos de jovens desaparecidos e que podem ter sido mortos pela facção. "Também temos conhecimento de pessoas que sumiram, mas que as famílias não denunciam porque têm medo de sofrer mais violência dessa facção. Em geral, são vítimas que vendiam drogas ou que tinham dívidas."
"Os traficantes têm total controle da área e lucram muito alto, todo mês, com a venda de drogas aos turistas", pontua outro policial.
O promotor de Justiça Rodrigo Altobello, que atua em Ipojuca, reconhece que o tráfico de drogas ainda é intenso em Porto de Galinhas, mas afirma que o crime está sendo combatido.
"Nesse último ano, não mudou tanta coisa lá. O tráfico de drogas, por ser muito lucrativo, atrai o grupo criminoso para a praia, porque tem muita gente querendo comprar. Numa operação que fizemos contra a facção, no ano passado, foram R$ 2 milhões apreendidos", afirma.
"Adolescentes continuam sendo cooptados para o tráfico, porque, se forem apreendidos, as penas são curtas e eles voltam para as ruas em pouco tempo. Sem oportunidades, esses jovens buscam crescer na vida criminosa e acabam perdendo a vida, porque são os alvos recorrentes (da violência)", completa o promotor.
Heloysa, de 6 anos, foi vítima de bala perdida enquanto brincava na rua, na comunidade de Salinas, em Porto de Galinhas, em 30 de março de 2022. Duas viaturas com sete policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) estavam perseguindo um suspeito de moto - que teria ligação com a facção.
Na época, os policiais alegaram que houve uma troca de tiros e que as viaturas chegaram a ser atingidas. Mas a investigação indicou que o suspeito não efetuou tiros.
Isso foi comprovado, segundo a Polícia Civil, a partir dos depoimentos de testemunhas no local onde a menina foi morta e por perícias realizadas nas armas de fogo entregues pelos policiais.
Os PMs do Bope contaram ter apreendido um revólver calibre 22 com três munições deflagradas e três intactas e atribuíram a arma ao suspeito que estava sendo perseguido e que conseguiu fugir.
A perícia, em relatório final, também excluiu a possibilidade de o tiro que atingiu menina ter sido de uma arma calibre 22.
Os exames apontaram que o mais provável é que tenha sido de uma arma calibre .40, a mesma usada pelo cabo Diego Felipe de França Silva, que confessou ter disparado tiros durante a perseguição policial.
O policial militar responde, em liberdade, pelo crime de homicídio qualificado - por resultar em perigo comum e por erro de execução (quando se pretende ferir alguém, mas outra pessoa é atingida).
A primeira audiência de instrução e julgamento do caso está marcada para o próximo dia 14 de junho, em formato remoto. Testemunhas de acusação, arroladas pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), e de defesa (convocadas pelo advogado do PM) serão ouvidas.
O réu também será interrogado - mas tem o direito de permanecer em silêncio. Após essa fase, acusação e defesa vão apresentar as alegações finais. Por fim, o juiz vai decidir se o PM irá a júri popular.
A advogada Pollyanna Queiroz e Silva, responsável pela defesa do PM, declarou que não há provas técnicas nos autos que confirmem que Diego atirou em Heloysa. "Também não existe nenhuma prova técnica para dizer que ao tiro que atingiu a menina foi disparado por algum policial. Os elementos são muito frágeis", disse.
Em paralelo à investigação da Polícia Civil, que resultou no processo criminal, um inquérito policial militar foi instaurado na época.
Essa investigação apontou que o tiro que matou Heloysa teve "autoria incerta", por isso a Polícia Militar decidiu que nenhum dos sete militares envolvidos no caso seria indiciado.
O resultado foi encaminhado, no final do ano passado, à Central de Inquéritos da Capital, do Ministério Público, que pediu arquivamento.
O promotor responsável argumentou que os crimes dolosos contra a vida cometidos por militar contra civil devem ser julgados pelo Tribunal do Júri local, e não pela Vara da Justiça Militar. Na última segunda-feira (27), a Justiça concordou com o parecer e decidiu arquivar o inquérito policial militar.
Além do processo criminal, o cabo da PM também responde a um processo administrativo disciplinar, que é conduzido pela Corregedoria da SDS. Não há prazo para conclusão.
Os outros policiais militares envolvidos na ocorrência, suspeitos de tentativa de fraude processual, também estão sendo investigados.
"Foi instaurada uma investigação para análise e verificação individualizada das condutas de todos os integrantes da equipe do Bope", informou, em nota, a SDS.
Já a Polícia Militar disse que "o policial indiciado como autor do disparo na ocorrência que vitimou uma criança em Porto de Galinhas está fazendo serviço interno".
"Os demais foram remanejados de área de atuação, mas continuam pertencendo ao mesmo batalhão", afirmou a PM.
A morte de Heloysa resultou em protestos, fechamento do comércio e medo em Porto de Galinhas durante três dias. Foi preciso reforço de centenas de policiais para que a situação na praia ficasse mais tranquila e e a rotina voltasse, aos poucos, ao normal.
Em 26 de maio de 2022, policiais do Bope mataram o suspeito que estaria sendo perseguido no momento da morte de Heloysa.
De acordo com a versão da Polícia Militar, Manoel Aurélio do Nascimento Filho e mais dois homens estavam em um carro e iriam realizar um atentado contra um detento do Presídio de Igarassu, que seria liberado. Por isso, uma equipe do Bope teria ido ao local para evitar o crime. Na suposta troca de tiros, o suspeito foi morto.
Os PMs envolvidos na morte do suspeito não foram os mesmos que participaram da perseguição policial que resultou na morte de Heloysa. A Polícia Civil disse que concluiu essa investigação e que "não foi encontrada relação entre as mortes de Manoel Aurélio e de Heloysa".