Um estudo inédito da Defensoria Pública de Pernambuco, com base nas audiências de custódia realizadas em 2023, revelou que 13,8% das pessoas presas relataram ter sofrido violência policial. O documento identificou ainda falhas nos encaminhamentos para apuração dos casos - muitas das denúncias não chegaram a ser investigadas.
Ao todo, 3.875 relatórios de audiências de custódia foram analisados. Desse total, havia 535 relatos de supostas agressões físicas ocorridas no momento das prisões ou pouco depois delas. O número de detidos que denunciaram os casos aos juízes é ainda maior: 602, porque, em alguns casos, havia mais de um nas audiências.
A coluna Segurança teve acesso à íntegra do documento, que tem a finalidade de identificar problemas e procurar o diálogo com os órgãos competentes para trazer mais transparências às denúncias de violência policial e melhorar as investigações para punir quem não cumpre a lei.
"Esse é um instrumento importante para buscar soluções em relação à violência policial. Trata-se do segundo ano do relatório, mas é o primeiro que nós conseguimos fazer uma avaliação de janeiro a dezembro. E nos chamou a atenção o fato de verificarmos uma média de mais de dois relatos de violência por dia. O número é alarmante", afirmou o defensor público Henrique da Fonte, coordenador do Núcleo de Defesa e Promoção de Direitos Humanos.
Muitas vezes cercadas por críticas, quando há concessão da liberdade provisória aos presos, as audiências de custódia foram lançadas em 2015 com o objetivo de o juiz analisar a prisão sob o aspecto da legalidade e da aplicação de medidas cautelares diversas, como o uso da tornozeleira eletrônica. Mas também é um momento para que eventuais torturas ou maus-tratos sejam denunciados.
O estudo da Defensoria Pública sobre a violência institucional identificou, por exemplo, que nem todos os laudos traumatológicos dos presos são entregues para análise durante as audiências de custódia.
"Em regra, o laudo deveria ser entregue momento da audiência de custódia, mas nem em todos os casos isso acontece", pontuou Fonte.
Segundo as estatísticas publicadas no estudo, 72,5% dos laudos traumatológicos foram apresentados ao juiz no momento da audiência. Mas 11,7% só foram entregues depois do prazo. Além disso, 15,8% não chegaram a ser realizados ou não foram disponibilizados pelo Instituto de Medicina Legal (IML), responsável pelo exame.
"Quase um quarto dos laudos afirma que não há elementos para comprovar se houve violência. Esse percentual chama a atenção, porque há um abismo na forma como são feitos esses laudos. É preciso multiplicar as perguntas, principalmente quando houver denúncia de violência policial, até para que a investigação seja mais qualificada", afirmou o defensor público.
Apenas quatro questionamentos padronizados são respondidos pelos médicos legistas responsáveis pelos laudos em Pernambuco:
1 - Houve lesão à integridade corporal ou à saúde do examinado?
2 - Qual o instrumento ou meio que a ocasionou?
3 - Da lesão resultou debilidade permanente de membro, sentido ou função, perigo de vida, aceleração de parto, incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias? (especificar)
4 - Da lesão resultou deformidade permanente, perda ou inutilização de membro, sentido ou função, enfermidade incurável, incapacidade permanente para o trabalho, aborto? (especificar).
Em 41% dos laudos entregues nas audiências de custódia, há a informação de que houve lesão corporal na pessoa que passou pelo exame.
FALHAS NOS ENCAMINHAMENTOS PARA APURAÇÃO DAS DENÚNCIAS
A Defensoria Pública do Estado identificou que, em 77 audiências de custódia no Recife, o juiz não perguntou ao preso se houve violência policial - apesar de o questionamento ser obrigatório e fundamental. Nas audiências, que devem ser realizadas em até 24 horas após as prisões, também há participação de um promotor de Justiça e da defesa do suspeito (caso não tenha advogado, um defensor público assume o papel).
"Levamos esse problema para a reunião da Câmara de Articulação do Juntos pela Segurança (encontros periódicos sob a coordenação do governo do Estado). Houve encaminhamentos, inclusive com o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) se comprometendo a deixar explícito em ata quando houver a denúncia de violência policial", explicou o defensor público.
Outro ponto de preocupação é a falta de informações em relação à acusação de agressão física após a prisão. Em mais de 300 denúncias, não há especificado em relatório se o autor foi um policial militar ou civil, por exemplo, dificultando o andamento da investigação.
Nos casos em que foram indicados os possíveis responsáveis, a maior frequência da violência relatada é proveniente da Policia Militar. A partir da análise, a Defensoria Pública descobriu que o 11º e o 16º batalhões lideram em número de denúncias.
O primeiro tem sede no bairro de Apipucos, na Zona Norte do Recife. Ao todo, 23 relatos de violência policial foram repassados à Justiça. Já o 16º BPM, localizado em São José, na área central da capital pernambucana, aparece no topo, com 35 denúncias.
Na Polícia Civil de Pernambuco, o maior número de queixas de violência policial é contra profissionais lotados no Departamento de Repressão aos Crimes Patrimoniais (Depatri), em Afogados, Zona Oeste do Recife. Houve 12 queixas reveladas nas audiências de custódia no ano passado. Em segundo lugar, com dez registros, aparece a Delegacia de Boa Viagem, na Zona Sul.
Procurado pela coluna, o TJPE informou que "segue todo o protocolo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e registra em ata todas as informações prestadas sobre eventual violência policial, com a devida remessa para o Ministério Público de Pernambuco, bem como para as Corregedorias das Polícias Civil e Militar".
A Polícia Militar de Pernambuco disse, em nota, que "todas as apurações encaminhadas pela Corregedoria Geral à PMPE são levadas à feito, respeitando-se os institutos do contraditório e da ampla defesa. Caso haja a comprovação dos fatos, adotam-se as medidas administrativas e criminais".
"O relatório completo foi encaminhado para o Ministério Público, Secretaria de Defesa Social e TJPE. Todos confirmaram o recebimento e estão cientes do conteúdo. A corregedora da SDS, inclusive, nos disse que está utilizando o estudo para fortalecer o trabalho deles", reforçou o defensor público.
MAIORIA DAS INVESTIGAÇÕES INSTAURADAS PELA SDS FOI ARQUIVADA
De acordo com a SDS, 363 denúncias de violência policial relatadas em audiências de custódia chegaram ao conhecimento da Corregedoria. O número é 32,15% menor do que o total de relatos contabilizados pela Defensoria Pública do Estado - o que reforça a alta porcentagem de casos que não são apurados por falhas nos encaminhamentos da Justiça para os órgãos competentes ou por causa dos laudos periciais incompletos/inconclusivos.
Do total de investigações preliminares, 329 foram concluídas com o arquivamento, ou seja, sem punição para os possíveis autores por falta de indícios que comprovem a violência. Outras 34 ainda estão sob análise no âmbito administrativo.
E somente oito investigações resultaram em sindicância administrativa disciplinar ou inquérito policial militar (este último no caso de indícios de crime militar). Não há prazo para conclusão desses procedimentos.
USO DE CÂMERA CORPORAL PRECISA SER AMPLIADO EM PERNAMBUCO
O crescimento da violência policial em alguns estados brasileiros tem preocupado. Na Bahia, por exemplo, 726 mortes decorrentes de intervenção de profissionais da segurança pública foram registradas entre janeiro e maio deste ano. Nesse número, estão incluídos os casos de legítima defesa (em confrontos), mas também de excessos cometidos pelos policiais - por isso a necessidade de investigações rígidas para esclarecer caso a caso.
Em Pernambuco, 120 óbitos em ações policiais foram somados no ano passado. Houve aumento de 30,4% em relação ao mesmo período de 2022, quando 92 pessoas acabaram mortas.
Um dos casos de grande repercussão foi a ação de policiais militares do Batalhão de Operações Especiais (Bope) que resultou nas mortes de dois homens em uma residência na comunidade do Detran, na Iputinga, Zona Oeste do Recife, em 20 de novembro de 2023.
Os policiais alegaram que houve legítima defesa, mas uma câmera filmou o momento em que eles invadiram a casa. Depois foram ouvidos os tiros. Por fim, dois corpos enrolados em lençóis foram retirados e levados nas viaturas.
As vítimas foram identificadas como Bruno Henrique Vicente da Silva, de 28 anos, e Rhaldney Fernandes da Silva Caluete, 32. Ambos chegaram mortos à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Caxangá, conforme laudos periciais.
O Ministério Público analisou as provas e concluiu que as vítimas não reagiram à ação dos PMs. A denúncia encaminhada à Justiça indicou que os militares teriam alterado o cenário das mortes para dificultar o trabalho dos investigadores. Seis PMs estão presos preventivamente e respondem por duplo homicídio qualificado.
Apesar de necessárias para garantir mais transparência nas ações, as câmeras corporais ainda são pouco utilizadas pela Polícia Militar de Pernambuco. Somente o efetivo do 17º Batalhão, com sede em Paulista, no Grande Recife, está utilizando as chamadas bodycams. São apenas 187 equipamentos e as gravações não são enviadas em tempo real para uma central, como é o ideal.
O secretário de Defesa Social, Alessandro Carvalho, já enfatizou em entrevistas à imprensa que a ampliação do uso só ocorrerá se houver investimento do governo federal.
Desde o ano passado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública tem incentivado que os estados adquiram as câmeras corporais para as polícias como forma de garantir mais transparência e redução da violência policial. Em maio deste ano, um protocolo foi definido com a padronização do uso dos equipamentos no País. Também houve a promessa de repasse de R$ 1 bilhão aos Estados e Distrito Federal para aquisição das bodycams.
"Na nossa visão, as câmeras corporais vão ser sempre uma forma de garantir mais segurança para os policiais e para o cidadão. O registro vai conferir transparência. Em São Paulo, houve uma queda drástica das mortes, por isso consideramos que esse é um importante instrumento para a redução da violência policial", enfatizou o defensor público Henrique da Fonte.