A ideia de um Brasil idílico, em que a convivência entre brancos e negros teria se dado sempre de forma cordial, defendida por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (1933) hà quase 90 anos, deu origem ao mito da democracia racial, desconstruído anos depois, mas que ainda persiste como maior ponto de crítica de sua obra. As interpretações deste livro dão origem a debates dos mais acalorados. Há quem defenda que Freyre tenha ousado e quebrado paradigmas em falar sobre uma temática até então tabu e que é necessário levar em consideração a época em que foi escrito.
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Para outra grande parcela de pesquisadores das ciências sociais, essa análise promove até hoje uma leitura equivocada e prejudicial das relações raciais brasileiras e a obra deve ser problematizada.
“Claro que um autor sempre escreve a partir de um certo momento histórico, mas precisamos ter em vista que Gilberto Freyre, além deste momento que era o Brasil dos anos 30, ocupava posições muito específicas nessa sociedade: um homem branco de uma família da elite açucareira. E se for levar em conta a época, temos um contemporâneo seu, Frantz Fanon, pensador que viveu em tempos parecidos, nasceu 20 anos depois, mas tem uma leitura totalmente diferente sobre a colonização ”, pontua a doutora em Antropologia pela The Nottingham Trent University e professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Liana Lewis.
Para a pesquisadora, Freyre se propôs a traçar uma narrativa sobre as relações raciais no Brasil e teve uma determinada importância pois questionou as bases do racismo científico, mas sua narrativa é a do dominador. “O problema é usarmos esse modelo da democracia racial como modelo explicativo. O livro é extremamente violento, porque ele desconsidera que a relação entre o senhor de engenho e o escravo era, acima de tudo, violenta e sádica, assim como eram as relações sexuais. Ele fala dos estupros de forma naturalizada, usa termos que floreiam, como ‘concubinato’ e ‘amores líricos’, ignorando as relações de poder e a violência extrema”, esclarece Liana.
Dentre os acadêmicos que prezam pela defesa de Casa Grande & Senzala está José Nivaldo Júnior, membro da Academia Pernambucana de Letras (APL). “Sua obra é uma galáxia, não para de crescer, Gilberto Freyre é cósmico. Este livro foi escrito em meio à uma guerra intelectual no contexto da ascensão do nazismo. Gilberto Freyre não escreveu para doutrinar, mas sim para proliferar”, acredita. “O livro foi escândalo na época, houve queima de exemplares, foi muito polêmico nos ciclos conservadores.”
O escritor e jornalista Mário Hélio, especialista do pensamento freyriano, lembra que foi o sociólogo quem organizou o primeiro Congresso Afro-Brasileiro, que aconteceu no Recife, em 1934. “Foi o primeiro autor a defender os negros na sociologia brasileira. Há pioneirismo de todo tipo em seus escritos, trata-se, sem dúvidas, de um grande autor. Querer reduzir sua obra empobrece a leitura.”
As críticas a Casa Grande & Senzala foram surgindo quando Freyre ainda estava vivo. Em entrevista concedida à jornalista pernambucana Lêda Rivas, em 15 de março de 1980, ele respondeu sobre esses questionamentos, quase 50 anos após ter publicado o livro. “Democracia política é relativa (…). Sempre foi relativa, nunca foi absoluta (...) O Brasil é o país onde há uma maior aproximação à democracia racial, quer seja no presente ou no passado humano. Eu acho que o brasileiro pode, tranquilamente, ufanar-se de chegar a este ponto.(...) Quando fala em democracia racial, você tem que considerar que o problema de classe se mistura tanto ao problema de raça, ao problema de cultura, ao problema de educação. (...) Mas é um país de democracia racial perfeita, pura? Não, de modo algum.”