Há uma ousadia um tanto perigosa no ato categórico de classificar uma obra como sendo uma das melhores/piores de determinado mês ou ano, além do risco latente de soar arrogante ao elaborar tal lista. Mas quando a obra em questão é tão provocadora e emocionante quanto o novo livro de Ayelet Gundar-Goshen, um dos nomes mais importantes da literatura israelense contemporânea, todo atrevimento se transforma em convicção. Despertar os Leões (368 pgs., R$ 49,90o e-book e R$69,90 o livro físico) é, sem dúvidas, um dos romances mais promissores deste primeiro semestre.
Este é o segundo livro da autora lançado no Brasil, sucedendo o também muito elogiado Uma noite, Markovitch (2018), ambos editados pela Todavia e traduzidos por Paulo Geiger. Se em sua estreia na literatura Ayelet escolheu escrever um romance histórico ambientado durante a Segunda Guerra Mundial, em Despertar os Leões ela apresenta um thriller cativante sobre culpa, redenção e amor.
Já nas primeiras linhas o livro começa mostrando que não haverá segredos entre os leitores e o protagonista, premissa que se mantém do primeiro ao último capítulo. Contado em terceira pessoa, a narradora nunca esconde os dilemas morais e os desejos que assolam o neurocirurgião Eitan Green, o que não se pode dizer o mesmo de outros personagens relevantes para a história, mantendo assim um bom equilíbrio entre descobertas surpreendentes e cumplicidade ao longo de todo o enredo.
Eitan é um médico que, até pouco tempo, tinha uma carreira sólida em um ótimo hospital de Tel Aviv. Mas ao descobrir um esquema de corrupção, concorda em se afastar da cidade e se muda com a esposa e os dois filhos pequenos para a desértica Or Okiba, na região central de Israel. Ao sair de um plantão, ele decide descarregar as frustrações de uma rotina que não lhe satisfaz dirigindo pelas dunas do deserto antes de ir para casa.
A noite era de lua cheia e no som do carro tocava Janis Joplin quando o atropelamento aconteceu. Desconcertado, Eitan sai do carro, percebe que a vítima é um emigrante eritreu e tenta prestar socorro, mas ao perceber que ele não irá sobreviver, foge do local. Na manhã seguinte, uma mulher eritreia bate à sua porta. É Sirkit, a viúva da vítima, que veio não apenas devolver ao médico a carteira que ele deixou cair na véspera (assim descobriu seu endereço), como para exigir algo em troca do acidente que custou a vida de seu marido: que ele passe a atender imigrante ilegais da Eritreia em um consultório improvisado, durante as madrugadas.
Eitan não tenta rebater ou oferecer grandes quantias de dinheiro em troca, ele se vê completamente a mercê desta misteriosa, calada e ainda assim autoritária jovem mulher, que subverte qualquer lógica de poder. O remorso o consome...talvez se esforçando para salvar as vidas destes imigrantes ele conseguirá se redimir por àquela que tirou? Mas nada é tão angustiante que não possa se complicar ainda mais. A detetive encarregada pela polícia para desvendar o caso do eritreu atropelado é Liat, esposa de Eitan.
Começa então um ciclo de mentiras e meias verdades entre o casal e de capítulos alternados entre as visões de Eitan, Liat e Sirkit dos acontecimentos que todos partilham mesmo sem saber. Entre o avançar das investigações policiais e os atendimentos no consultório clandestino, somos ainda apresentados de forma muito sensível às nuances da sociedade israelense. Neste país do qual costumamos receber notícias meramente de cunho político, descobrimos a convivência complicada entre judeus orientais, ocidentais, beduínos e refugiados.
Despertar os Leões vai na contramão de muitos thrillers contemporâneos que apresentam uma linguagem e um ritmo narrativo mais próximos do formato cinematográfico. Para Ayelet Gundar-Goshen, não há necessidade de ter pressa em desvendar todos os mistérios nem de dezenas de reviravoltas mirabolantes. Ainda assim há espaço para revelações surpreendentes e confissões que investigam os sentimentos dos personagens de uma maneira profunda e extremamente comoventes. A autora não nos leva a julgar as ações dos envolvidos. Pois não há necessidade de discernir o certo ou errado, desvendar o bem e o mal, quando as múltiplas camadas da complexidade humana são postas de uma maneira tão real e avassaladora.