O cinema norte-americano e a Guerra do Vietnã possuem relações intensas. Considerada como talvez a maior derrota do militarismo dos Estados Unidos, o embate e seus traumas foram um prato cheio para um novo cinema que surgia, aliado, de certa forma, aos movimentos de contracultura e perspectivas antibelicistas. A guerra como espetáculo do absurdo, feridas psicológicas e espirais de insanidade que acometem o homem branco no campo de batalha ou sobrevivente, tudo foi representado de forma intensa e significativa por nomes como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Stanley Kubrick, Oliver Stone e Michael Cimino.
O embate também foi o de maior proporção de afro-americanos nas fileiras de combate até então. Sendo pouco mais que 10% da população total do país, só em 1965, os combatentes negros representavam quase 15% das mortes na guerra. Mas suas experiências e seus traumas, mesmo sendo amplamente combatidos no discurso de figuras como e Muhammad Ali, Martin Luther King, Malcolm X, foram coadjuvantes nessa safra de filmes engajados e arrebatadores. Esses dois últimos foram assassinados nos Estados Unidos enquanto uma parte da população negra estava atirando, do outro lado do mundo, em um inimigo que não era aquele que estava negando seus direitos na própria pátria-mãe.
É ciente desse esquecimento que o combativo Spike Lee traz Destacamento Blood, disponível desde a última sexta-feira na Netflix. Mais do que lembrar, o diretor faz de sua obra um filme-disputa e vai brigar pelo imaginário do Vietnã em diversos frontes, seja na dimensão visual, documental, didática e melodramática. Lee parece estar interessado em, com um único filme, rearticular diversas óticas do conflito que foram historicamente negadas, agora agindo de forma retrospectiva. Disputar o Vietnã enquanto forma e conteúdo. Um trabalho que diante da amplitude proposta talvez não encontre plenitude em todas suas articulações, mas que definitivamente é dono de uma força revisionista única.
A jornada é encabeçada por quatro veteranos do Vietnã que decidem retornar ao país do conflito. Eles são motivados por uma busca de dimensões materiais e simbólicas: encontrar um tesouro que esconderam nos anos do combate, assim como o corpo de um amigo inspirador, morto no conflito. Seus caminhos no pós-guerra foram diversos, como um que virou empresário milionário, já outro um ressentido nacionalista. Todos lidando em diferentes graus de superação com os eventos que viveram juntos nos anos 1970. O retorno ao país acaba por engatilhar uma série de tensões adormecidas, envolvendo os traumas, o mundo que mudou e o mundo que permanece o mesmo.
É uma abordagem narrativa que põe em evidência uma sensação de atraso, uma história que deveria ter sido contada antes, mas só agora está podendo ser. Sua abertura, dominada por imagens documentais, ressalta o olhar retrospectivo, permitindo formular uma tônica emocional de raiva ao olhar para trás. Mas também dá o primeiro indício de como Lee vai se apropriar de uma profusão de formas em sua revisão. E, levando em conta com o Vietnã no cinema já aparece com um revisionismo do gênero filme de guerra, aqui contamos com um revisionismo do revisionismo. É colocado para jogo, mais uma vez, o melodrama simplista, o didatismo verbal e documental - estes também presentes em seu último filme, Infiltrado na Klan (2018) -, a ação física, a violência gráfica e os questionamentos morais.
Sua escolha de não reencenar a guerra em si, que aparece apenas em flashbacks, mas sim de encenar sua experiência a partir do agora, acaba por rearticular seus elementos estéticos com a luz do presente. Se em Apocalypse Now, a Cavalgada das Valquírias, de Wagner, é evocada para um esquadrão de helicópteros carregando militares armados e prontos para o combate, aqui ela acompanha um grupo de velhinhos em um barco no meio da vida urbana da cidade de Ho Chi Min. Já a câmera com película Super-8 não registra o dia a dia no meio da mata hostil, mas também o mesmo grupo de velhinhos no barco, sendo empunhada agora por um professor universitário.
E se o ex-combatente Travis Bickle (Robert DeNiro) de Taxi Driver pôde ter seu rompante de fúria e desordem psíquica lá em 1976, Paul (Delroy Lindo) precisou diluir o seu por mais de 45 anos, tendo apenas a verbalização de seus conflitos durante esse tempo e um boné "Make America Great Again" para ilustrar essa bagunça emocional. Então Lee dá a chance para o personagem dar vazão a sua fúria movida pela culpa e Lindo embarca em um verdadeiro tour de force, ganhando o "privilégio" de olhar diretamente para câmera e jogar todo seu caos interno, com olhos arregalados e uma postura agressiva.
Agora esse jogo retrospectivo também vai carregar marcas que não vão soar tão profundas como outras. O filme ainda se permite operar deslocamentos da tensão racial para fora dos esquema negritude/branquitude ao colocar os vietnamitas no jogo e promover uma outra zona de conflito. Essa outra tensão, por sua vez, vai carregar momentos que não alcançam a plenitude total, até chegando em algumas zonas cinzas, mas também caindo muito em extremos de cordialidade e hostilidade. Se o novo hoje Vietnã tem cores mais vivas, certamente não é pela presença de um McDonald’s lá, mas sim por uma história muito menos colorida de luta por reafirmação de uma identidade nacional.