Obra de Machado de Assis ganha nova tradução nos EUA. Entenda a atualidade de 'Memórias Póstumas de Brás Cubas'

Primeira tiragem da nova edição deste grande clássico da literatura brasileira esgotou em um dia nos EUA
Valentine Herold
Publicado em 20/06/2020 às 8:00
Machado de Assis Foto: REPRODUÇÃO


Escolher começar uma matéria tendo como gancho o parágrafo final de um livro pode não ser a maneira mais convencional, mas tratando-se este livro de um clássico escrito por Machado de Assis, e tendo este clássico um narrador que escreve sua biografia depois da morte, tudo parece estar nos conformes. As noções de início e fim em Memórias Póstumas de Brás Cubas são constantemente subvertidas, começando com a própria dedicatória do livro, "ao verme que primeiro roeu as firas carnes do meu cadáver". A obra é encerrada com uma confissão aliviada e um aviso ao leitor que, por engano, pode ter achado que Brás Cubas morreu sem levar nem deixar nada em vida. "(...) ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria", relata na frase final.

Este 21 de junho marca a data de nascimento de Machado de Assis (1839). Assim com o protagonista deste que foi seu quinto romance, o escritor carioca não teve filhos, mas, ao contrário de Brás Cubas, deixou um imenso legado através de sua obra, que continua fascinando leitores mais de 100 anos após sua morte. A ousadia e o sarcasmo são apenas algumas das características machadianas possíveis de serem analisadas a partir deste pequeno trecho final de Memórias Póstumas de Brás Cubas e que evidenciam-o como uma das maiores obras da literatura.

Não apenas brasileira, como já apontaram Susan Sontag ("o melhor escritor da América Latina, superando o argentino Borges") ou ainda Harold Bloom ("o maior literato negro da história da literatura universal"), só para citar alguns grandes fãs internacionais do autor. Inclusive no início deste mês uma nova edição norte-americana foi lançada pela Penguin Classic, com tradução de Flora Thomson-DeVeaux e prefácio de Dave Eggers.

Eggers, escritor e editor, também assinou um texto no último dia 2 na revista The New Yorker em que afirma que The Posthumous Memoirs of Brás Cubas é um dos livros mais inteligente e divertido que ele já leu na vida. Neste mesmo dia, esgotava-se a primeira tiragem desta nova edição. Quais os motivos deste sucesso repentino entre o público norte-americano de um romance brasileiro, originalmente publicado em 1880 como folhetim na Revista Brasileira, e que já circulava há décadas nas livrarias locais com versões em inglês? Seriam estas razões as mesmas pelas quais a obra é tão reverenciada aqui no Brasil?

DIVULGAÇÃO - LANÇAMENTO Chegou no início de junho, nos EUA, a nova tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas

Flora, que teve seu primeiro contato com Machado de Assis durante a graduação na Princeton University, acredita que o livro apresenta um frescor que persiste após quase um século e meio de publicação. Mas, para determinar os exatos porquês do novo entusiasmo norte-americano, ela acrescenta que é preciso "deixar a leitura decantar, ver quem é esse público que o livro alcançou e como ele será lido por eles."

A tradução desta grande obra resultou da tese de doutorado na Brown University e, ao longo dos anos, as leituras que realizou de Memórias Póstumas provocaram nela distintas interpretações. "Tenho uma lembrança clara de chegar no capítulo do 'Delírio' e abaixar o livro um pouco para respirar, de tão impressionada que fiquei com as alucinações do narrador moribundo. Achei o livro estonteante, inovador, hilário. Acontece que ao longo dos anos seguintes, conforme fui estudando o contexto histórico e a obra machadiana mais detalhadamente, fui achando cada vez menos graça. Fui percebendo a crueldade do humor do personagem-narrador, o jeito que ele trata de sempre, como ele diz, minimizar as injustiças humanas. Foi só ao traduzir o romance ao longo de alguns anos que consegui recuperar o humor – que não deixa de ser um humor dolorido", pontua.

Escrito "com a pena da galhosa e a tinta da melancolia", segunda as palavras do próprio defunto autor, o livro apresenta de fato um equilíbrio entre o deboche machadiano, o bom-humor de quem não precisa mais se preocupar em agradar outrem e as lembranças dos diversos fracassos amorosos e profissionais. Dividido em 160 capítulos curtos - alguns possuem apenas um parágrafo, uma frase ("Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil") ou até apenas pontilhados, como é o caso "De Como Não Fui Ministro D'Estado", que antecede o capítulo "Que Explica o Anterior", cuja frase inicial é: "Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior." Uma obra que desperta no leitor risadas genuínas seguidas de reflexões acerca da formação social do Brasil.

E muito mais do que narrar acontecimentos da própria vida, Brás Cubas retrata as hipocrisias, os costumes, e as pretensões políticas da burguesia brasileira do final do século 19. As relações raciais também estão bastante presentes. Afinal, a vida terrestre de Cubas se dá entre o ano de 1805 e 1869, cerca de 20 anos antes da abolição da escravatura.

Questão racial

É importante tocar na questão racial ao falar de Machado de Assis, ele que por tanto tempo teve sua negritude apagada. E talvez também esteja aí um dos fatores do novo interesse pelo autor nos Estados Unidos. No mesmo dia do lançamento da nova edição, diversas cidades do país já eram palco dos protestos liderados pelo movimento Black Lives Matter, após o brutal assassinato de George Floyd por um policial branco. Para o professor da Usp e autor dos livros Machado de Assis, o Escritor que Nos Lê (Editora Unesp) e Escritor por Escritor - Machado de Assis Segundo Seus Pares (1908-2008) (Imprensa Oficial), Hélio de Seixas Guimarães, não descarta o atual contexto social como um dos fatores para o sucesso das vendas.

"Vale lembrar que, nos Estados Unidos, Machado de Assis vem sendo classificado e lido como escritor negro desde a década de 1930, como verifiquei em pesquisa recente no Schomburg Center for Research in Black Culture, uma divisão da Biblioteca Pública de Nova York especializada em assuntos africanos e afro-americanos. Ali encontrei fichas catalográficas das décadas de 1930 e 1940 em que Machado era identificado como 'black author' ou 'negro author'", detalha o pesquisador da obra machadiana.

Para Hélio, deve-se também destacar o espanto que a leitura de um livro escrito em 1880, por um morto que recusa as explicações e os dogmas que tratam da vida após a morte como um dos porquês do reconhecimento da grandeza da obra, tanto no Brasil quanto nos EUA, assim como o estilo muito livro do autor. "Os motivos do reconhecimento e valorização de Machado de Assis variaram muito ao longo do tempo. No período de sua vida, foi reconhecido pelo domínio impressionante da língua e por um certo tom filosofante, mas visto como um escritor meio estrangeiro. Hoje Machado é valorizado não só pelo incrível domínio que tem da língua, mas também por ser o escritor que criticou com mais agudeza e profundidade as grandes questões brasileiras."

Neto de escravos libertos, Machado de Assis nunca deixou de tocar no assunto do escravagismo. O professor da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, e autor do livro Machado de Assis Afrodescendente: Antologia e Crítica, cuja terceira edição acaba de ser lançada pela editora Malê, Eduardo de Assis Duarte, chama a atenção para o fato de Machado matar todos os senhores de escravos em seus romances. "Isso é muito simbólico! Ou eles já estão mortos quando o livro começa e aí temos a narrativa composta por relatos dos filhos e das viúvas, ou eles morrem ao longo do romance. A literatura de Machado é uma literatura de anti heróis, ele tece uma alegoria do fim do mundo construído pelo colonialismo. Brás Cubas quando fala que não deixou a ninguém o legado da miséria está se referindo à miséria humana, a obra dele é monumental, de fato ele é um autor pré-moderno", ressalta.

Para Eduardo, críticas que Machado de Assis não falava explicitamente sobre questões raciais são completamente sem fundamentos. Durante sua atuação enquanto jornalista, ele escrevia sob pseudônimos, e assim protegido das perseguições realizadas aos abolicionistas, se expunha contra a sociedade escravocrata. "Essas acusações partem de uma leitura superficial da machadiana. Inclusive, Raimundo Magalhães Júnior, que foi seu biógrafo, diz que Machado foi sócio oculto de um dos principais jornais abolicionista, a Gazeta de Notícia. Ele foi um homem de uma bagagem cultural impressionante, fundou a Academia Brasileira de Letras e isso a elite branca não queria aceitar. A saída diante da grandeza deste homem negro foi embranquecê-lo, um ato de racismo estrutural em que há um rebaixamento do que é produzindo por quem não é branco."

Existem diversas definições a respeito do que determina uma obra ou um autor como clássico e uma das mais conhecidas é a de Ítalo Calvino. Para ele, "um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer." Ainda temos muito a aprender e a nos divertir com Machado de Assis. Por motivos leves e outros nem tantos, suas observações sobre o Brasil e os anseios humanos permanecem como nunca atuais.

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