Uma espécie de estudo da presença e da ausência atravessa a obra de Jessie Ware desde seu primeiro disco, Devotion (2012). As sensações causadas pela proximidade ou distância do objeto de afeto/desejo são trabalhadas com complexidade pela britânica e ganham uma nova e excitante camada no recém-lançado What's Your Pleasure?, trabalho refinado no qual ela investiga essas questões mergulhada nas influências da música eletrônica.
O flerte de Jessie Ware com a música eletrônica já vem de alguns anos, especialmente através de colaborações com artistas como Disclosure, SBTRKT, Joker e Katy B. Seu trabalho solo, ainda que fundamentado no pop, soul e r&b, também já continha experimentações com a diversidade do gênero nos álbuns Tough Love (2014) e Glass House (2017). Mas, em What's Your Pleasure?, ele passa de coadjuvante a protagonista.
Alinhada com uma tendência que vem movimentando a música pop, que nos últimos meses tem resgatado o poder catártico da dance music e suas variações, a artista entrega um trabalho cuidadosamente lapidado, com várias camadas e maduro. Ela leva para a pista um caldeirão de sentimentos de alguém para quem a noite (ou a ideia dela) ainda é excitante, mas nem por isso, ilusória. Com a vivência de quem sabe que, sob as luzes de estrobo e o reflexo do globo espelhado, a linha entre real e fantasia muitas vezes deixa de existir, ela se permite abrir mão do controle e sentir.
Há desejo, confusão, esperança e sentimentos cinzentos que permeiam as relações embaladas pelos sintetizadores. "Me diga quando eu vou ter mais do que um sonho de você", canta na hipnótica Spotlight, que abre o disco. Lançada no final de fevereiro, pouco antes da pandemia se instaurar em todo o mundo, a canção ganha novos significados diante da realidade do isolamento social, assim como todo o disco.
A impossibilidade de aglomerações (pelo menos oficialmente, já que muitos não têm respeitado as regras e, assim, colocam em risco a saúde todos) criou uma espécie de paradoxo na música pop, uma vez que canções que evocam o contato, a troca em um espaço comum (a pista de dança), ficaram circunscritas às limitações das casas. É o caso de obras como a de Jessie, Dua Lipa, Lady Gaga, Rina Sawayama e Carly Rae Jepsen, só para citar alguns dos trabalhos internacionais mais marcantes lançados no prieiro semestre.
Se Jessie Ware não era estranha ao universo da pista de dança, graças às colaborações anteriormente citadas, é fato que a sua imagem está associada a baladas amorosas no imaginário do grande público, principalmente no Reino Unido, onde reside a maior parte da sua audiência. Há algo de enigmático em suas interpretações e em sua figura, quase como uma figura distante que pode evocar, ao mesmo tempo, a sensação de impenetrabilidade e de empatia, mais próxima de uma Adele do que de uma Roisín Murphy.
What's Your Pleasure? expande essa percepção e abre outras possibilidades para a artista, que aparece aqui mais solta e disposta a arriscar. A faixa-título, por exemplo, exala luxúria, um desejo em ebulição pronto para se concretizar. É uma atmosfera que dá tom ao álbum e se manifesta de maneira igualmente direta em canções como Ooh La La, que homenageia o pós-disco dos anos 1980, com sintetizadores e instrumentos gravados ao vivo, evocando trabalhos de Prince e produções de Nile Rodgers.
Este direcionamento esteve no âmago da criação do disco, segundo a cantora, que afirmou ter feito um disco que despertasse nas pessoas o apetite sexual. Nesse sentido, é interessante observar como a inglesa conseguiu adaptar essa carnalidade para o contexto atual. Exemplo disso é a transformação visual do projeto: no clipe de Spotlight, ela é vista em uma festa, confraternizando e sensualizando com várias pessoas. Agora, os vídeos de faixas como Step Into My Life, Save a Kiss e Soul Control apresentam, cada, apenas um dançarino performando isolado, em uma solução criativa e que dialoga diretamente com o espírito de seu tempo.
Reduzir a sonoridade do álbum à disco music é ignorar o ecleticismo e a celebração da música eletrônica em sua diversidade feita pela a artista. Como o desenrolar de uma noite de festa e suas variações de humor - desencadeadas por fatore internos e/ou externos, do toque de uma música querida à visão de um ex-amor - o álbum é bem-sucedido em criar atmosferas complexas e por vezes antagônicas, ainda que sonoramente seja absolutamente coeso.
O uso de intrumentação ao vivo, como violinos, ajuda a enriquecer faixas como In Your Eyes e Remember Who You Are, que brilham com as interpretações hipnóticas de Jessie. Adore You é outro destaque do álbum, em um momento hipnótico que a conecta à tradição de grandes cantoras da disco music, como Donna Summer e Diana Ross, que conseguem soar como vozes do futuro, quase robóticas nessa junção com os sintetizadores, e ao mesmo tempo, profundamente humanas e emotivas.
Confiante e disposta a surpreender, Jessie Ware se reposiciona como uma artista no controle de sua arte, uma mulher em estado de transformação. Enquanto em seus álbuns anteriores a vulnerabilidade era resultado quase de uma dependência emocional, em What's Your Pleasure? o outro continua uma incógnita, mas não o minotauro, a ameaça, no final do labirinto. A jornada noite adentro, dessa vez, é em busca do autoconheciemento, do próprio prazer, em um movimento de hedonismo saudável e necessário.