Foi entre 2010 e 2016 que o SoundCloud rap virou um dos maiores fenômenos do hip hop norte-americano. A internet era esse meio de distribuição irrestrita e independente, onde uma geração de artistas jovens produzia incessantemente suas músicas sem sair de casa.
Os free type-beats (instrumentais disponíveis de graça) alimentavam uma cadeia de “mumble rappers”, que uma hora ou outra conseguiam bombar com hits na plataforma. Era o caminho do notebook caseiro até as grandes gravadoras.
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Mas estamos em 2020, o Soundcloud já não é mais tão interessante assim, e os principais astros do gênero vivem um declínio. É nesse cenário que outro movimento com características democratizantes similares, mas de essência diferente, vem ganhando cada vez mais espaço.
Nada de beats dançantes ou lírica frugal. Nomes como Maxo, Mavi, MIKE, Medhane, Zelooperz e Navy Blue apostam no lirismo intimista, com beats cíclicos e lofi de samples garimpados dos clássicos do Jazz, Soul e Bossa Nova. A “má” mixagem proposital dá um toque de experimentação e autoria às composições.
Na sua maioria, as letras lidam com perdas, nostalgia, depressão e a luta interna contra os próprios demônios. Concisão é a tônica, com canções de um minuto e pouco bastando para uma confissão direta.
“A sombra me acompanhava enquanto eu estava pisando no meu próprio ressentimento/ A vida se dispersa em todas as direções/Eu estava super zeloso”, rima Navy Blue em Deathmask..., do seu breve, mas profundo, álbum GangWay for Navy, todo produzido e lançado pelo próprio artista na internet.
O Bandcamp é agora o lugar onde a maioria desses trabalhos são depositados – principalmente por possuir um sistema financeiro mais sustentável que o SoundCloud. Mesmo assim, o interesse desses rappers não parece dizer respeito ao auge comercial, mas exercitar suas independências criativas em universos cada vez mais inexplorados.
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Sonoramente, relacionar as músicas ao clássico Madvillain, de MF Doom e Madlib, é o caminho mais percorrido. Mas também podemos falar de The Pharcyde, Digable Plantes, Talib Kweli e De La Soul.
Um bom exemplo que alcançou o “mainstream” é o álbum do rapper Earl Sweatshirt, Some Rap Songs. Não mais Tyler, The Creator e o extinto ODD Future, Earl agora vem colaborando aos montes com vários dos nomes já citados. “sLUms” é o chamado grupo experimental que ele compõe junto a produtores e rappers como Adé Hakim, Darryl Joseph e MIKE.
Este último acaba de lançar um dos principais discos que melhor sintetizam as ideias do movimento, e que é certamente um dos melhores álbuns do ano.
Weight of the World deve ser o décimo ou maior projeto que MIKE desenvolveu, entre seus vários disponíveis no Bandcamp, Spotify e Youtube. São 16 músicas, com 12 produzidas por ele sob o pseudônimo de dj blackpower.
Weight of the World é uma continuação temática ao seu sombrio antecessor Tears of Joy (2019). O rapper de 21 anos segue lidando com a perda da mãe e as confusões mentais que o perseguem.
Enquanto Tears of Joy é o momento de frontalidade da dor, com um instrumental lofi pesado, Weight of the World é mais expansivo na aflição. Agora surgem as lembranças do passado frente a uma rotina de aceitação – e musicalmente mais diversa.
“Eu sei que minha mãe canta essa música, então nunca esquecerei”, rima MIKE na composição Weight of the Word* sobre um sample de Carro Alegórico, de Moraes Moreira. Ele ainda tenta acompanhar o baiano cantando no português “Há tantos seres imaginários/Que procuram os artistas”.
A canção parece terminar, mas MIKE a reanima gritando quase como um expurgo “Eu queria ter ficado por muito tempo/ Nada do que você diz está errado, cura”.
A voz de MIKE em Weight of The World é um elemento fundamental na construção semântica das músicas. Conhecido por um tom grave e às vezes monocórdico nas repetições de flow, aqui suas rimas amortecem as várias emoções.
Em What’s Home ½, o rapper versa com agressividade sobre um beat austero “Até hoje, eu ainda reajo a todas as mudanças/ Eu construí um status para o meu nome, eles tentaram tomar”. Na segunda metade da composição, ele muda o tom da sua voz “O que é a sua casa se não o seu coração?”, repete agora vagarosamente sobre um sample do samba enredo da Mangueira, de 1967.
Além de um bom liricista, Mike sempre manteve um olhar apurado para a produção. Seja redirecionando seus trabalhos sob órbitas de dor, amor ou auto-afirmação, os beats e samples são um show à parte. Em Weight of The World, todos chops (repetições dos beats) se encaixam nas significações propostas pelos universos sonoros das canções.
As 12 primeiras músicas são trabalhos propositalmente mal mixados e curtos (entre 1 a 2 minutos de duração), mas longe de soarem como rascunhos. A força do encontro entre o beat e a voz de MIKE bastam para um mergulho total nas abstrações melancólicas do disco.
A partir daí já não há mais égides do bom gosto; a má mixagem, as canções curtas e os cortes abruptos são adicionais semânticos no embarque dos signos que o rapper nos entrega. E é justamente nessa sinceridade autêntica para lidar com os sentimentos de nostalgia, perdas e lembranças que MIKE nos aproxima da sua música.
“O sol vai brilhar para você algum dia/ As nuvens vão sumir amanhã/ Eu quero que você dê um passo à frente, sem mais medos/ Sem mais lágrimas”, repete uma voz quase inaudível no interlúdio Never Thought (Tribute).
Mesmo aprofundando e complexificando todas suas dimensões artísticas, Weight of The World talvez não seja o melhor álbum de MIKE. São 35 minutos em 16 faixas. Uma concisão refletida em músicas curtas e lofi, que obedecem a um contexto específico, mas que às vezes parecem esboços de algo maior.
Ou talvez essa seja mesmo a intenção, dado a dilatação temática do disco e as proposições da sua própria carreira – o que no final não é nenhum demérito.
“No meio da viagem, eu não consegui redirecionar/Cai em grandes multidões, mas vou sair com orgulho”, rima Earl Sweatshirt, na sua participação especial na última música do álbum, AllStar, falando sobre nunca abrir mãos dos seus princípios mesmo diante da fama.