Abstrações, pianos e rimas: JuPat está 'Nadando com Peixes que Voam', em novo álbum

Depois de vir ao mundo com 'Toda Mulher Nasce Chovendo', momento de fincar sua resistência como artista e mulher trans, a paulista nos propõe uma viagem sensorial e musicalmente mais diversa
João Rêgo
Publicado em 02/10/2020 às 16:01
UNIVERSO SURREAL Abstrações, pianos e rimas embalam a rapper trans JuPat em seu segundo trabalho, produzido por Nikolas Chacon Foto: DIVULGAÇÃO


No rap, o bom liricista é aquele que faz do seu som um circuito-aberto. Preenche as rimas de referências, propõe um destino pessoal, mas compreende a ambiguidade na escuta do ouvinte.

É poesia trabalhada e talhada no verso como um universo sonoro de possibilidades e impossibilidades. Daí nasce o ápice artístico: ao tocar na essência mais universal, ele encontra sua atemporalidade – seja falando de sexo, dores, vivências ou lutas.

Nadando com Peixes que Voam, álbum da rapper JuPat, é um exemplo deste processo. Depois de vir ao mundo com Toda Mulher Nasce Chovendo, momento de fincar sua resistência como artista e mulher trans, a paulista nos propõe uma viagem sensorial em espaços de abstrações.

“Eu não quero ser didática. Eu tento o máximo possível me afastar das expectativas do que alguém vai ouvir quando sentir aquilo. Às vezes, nem eu sei o que estou escrevendo ali, ou se está fazendo sentido na hora. Às vezes, vai fazer depois de um tempo”, ela explica.

Perto do Rio Piracicaba, JuPat se uniu ao produtor Nikolas Chacon para criar as 11 faixas do projeto. Distante da correria da cidade, ela estabeleceu seu próprio fluxo temporal, que é também seu fluxo de criação.

Até por isso, Nadando com Peixes não se fixa em ponto nenhum. É cheio de canções com versos assimétricos, encontro de vozes sobrepostas, ruídos e sons espectrais.

“Eu falo que o disco é sobre essa tentativa de decifrar o surreal que está em cada minuto da nossa vida. É como se eu voltasse despedaçada do meu nascimento, mas inteira e observando mais conscientemente a transcendência de cada minuto da nossa vida”, ela diz.

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Inclusive, foi dessa observação que nasceu o título do álbum, depois de um peixe cair no teto do carro da artista enquanto ela dirigia no meio da cidade. “Eu parei para pensar como coisas surreais acontecem o tempo todo na nossa vida. Eu gostei de estar atenta a isso, porque se o absurdo é possível, tudo é possível, até um corpo trans ser objeto de amor. E era isso que eu estava vivendo”.

Entre transições e permeabilidades, Nadando com Peixes marca uma mudança na obra de JuPat, que se distancia do rap, sua matéria prima desde os 13 anos. “Ele foi a minha linguagem e casou perfeitamente com o que eu estava precisando no meu primeiro disco, porque era isso que eu vivia. Essa transgressão, essa resistência, essa luta, essa força que só o rap tem”, ela conta.

“Mas eu nunca fui uma mulher de ficar presa em um só gênero, tanto na vida como na música”.

Segundo ela, o primeiro trabalho passa pela ideia do seu próprio nascimento e resistência, enquanto o segundo atravessa “o que é ser mulher, as impermanências e um chamamento para o universo feminino”.

A presença de Chacon, produtor com experiência em outros gêneros musicais, foi preponderante na complexidade sonora do álbum. As faixas carregam beats leves, com pianos, violões e distorções jazzísticas mais lentas.

O campo perfeito para versos intimistas e abstratos de rimas multissilábicas e inteligentes – mais perto de uma declamação de poesia do que repetições batidas de triplet flow. É assim, por exemplo, em Flores Secas, canção onde JuPat e o rapper Warllock unem suas rimas.

Na mesma medida, há momentos de maior embarque sensorial como em Flores Azuis e Mar Azul. Os destaques vão também para as três faixas com o dueto entre JuPat e Denise Mokreys, ex-parceira da artista e figura fundamental na sua transição e desenvolvimento pessoal.

De forma geral, Nadando com Peixes é quase um manifesto contra o didatismo enclausurador da concisão. Até porque, como ela mesmo define, “JuPat é uma artista que sempre se baseou em buscar se conhecer e saber explorar as camadas mais profundas de quem nós somos”.

Dona de uma arte existencial (em um mundo que a obriga a sobreviver), ela se vê apoiada na marginalidade e independência, caminho perfeito para sua criação livre e longe de lógicas algoritmias e capitalistas da autopublicidade.

É também dessa posição que JuPat pode se libertar das contingências políticas da sua vivência – não da luta, ressalte-se, mas de uma agenda limitadora.

“Parece que uma mulher trans só é ouvida quando ela está lacrando, militando ou sendo assassinada. E eu acho isso muito perverso, como se o nosso lugar fosse somente esse”, ela diz. “E é isso que eu defendo com esse disco. A defesa que a gente tem direito ao espaço das sutilezas. Direito a respirar e cantar sobre qualquer coisa”.

Nadando com Peixes que Voam já está disponível nas principais plataformas digitais.

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