Na noite da última segunda-feira, 5 de abril, dois participantes da edição 21 do reality Big Brother Brasil, da Rede Globo, levaram para a televisão aberta um tema caro à grande parte da população, porém silenciado por séculos. Ao associar o cabelo do professor João Luiz Pedrosa a uma peruca usada em uma fantasia de "homem das cavernas", o cantor sertanejo Rodolffo Matthaus fez com que o racismo fosse mais uma vez o cerne de discussões dentro e fora das bolhas virtuais. Isso porque a fala do músico, considerada por ele um deslize "sem intenção de ofender", reacendeu no colega João Luiz e em seus semelhantes, homens e mulheres pretos, o alcance que a chaga da discriminação racial impõe em suas vidas desde o nascimento.
A morte do norte-americano George Floyd, sufocado durante quase oito minutos por um policial branco, e a do menino Miguel, de cinco anos, que sofreu uma queda fatal, depois de ser deixado sozinho no elevador de um prédio de classe alta do Recife, pela patroa de sua mãe, foram outros acontecimentos responsáveis por trazer à tona, ao longo dos últimos dois anos, debates sobre a necessidade de se adotar políticas e práticas que causem, de fato, efeito na estrutura.
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O trânsito entre 2020 e 2021 também é o período de tempo que marca os cem anos da chegada de A Menina do Narizinho Arrebitado à literatura nacional. O conto introduziu o público leitor ao universo do Sítio do Pica Pau Amarelo, dando como companhia à garotinha do título personagens e cenários que marcaram - e ainda marcam - a infância de muitas gerações. Acontece que o centenário da obra trouxe junto de homenagens uma quantidade vasta de críticas à publicação em si e à decisão da família de Monteiro Lobato de reeditá-la, ambas situações arrodeadas pelo mesmo motivo: o apontamento de racismo nos escritos do autor, morto em 1948.
Em uma das passagens mais conhecidas de Caçadas de Pedrinho (1933), por exemplo, Tia Nastácia, a empregada negra do Sítio, é assim referida: "(...) Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida (...)". O livro foi apontado como de teor racista pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que aconselhou a sua não distribuição às escolas públicas pelo governo. Em seguida, a relatora da proposta decidiu que cabia aos professores explicar aos alunos a existência de conteúdos racistas, ação seguida de um mandado de segurança solicitado pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara), junto ao mestre e pesquisador de gestão educacional Antônio Gomes da Costa Neto.
O caso foi submetido a audiências no Superior Tribunal Federal (STF), em 2010 e 2012, ambas sem acordo entre as partes, e voltou à pauta em maio do ano passado. Agora, a reedição das obras prevê, além da tradução para o inglês, a remoção e readequação de termos e contextualizações consideradas discriminatórias.
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Quem está à frente das modificações é a historiadora Cleo Monteiro Lobato, bisneta do autor. Em entrevista por e-mail ao JC, ela, que mora há 23 anos nos Estados Unidos, conta que há algum tempo teve a ideia de traduzir o bisavô com o objetivo de torná-lo conhecido naquele país. Reflete sobre sua relação pessoal e profissional com um dos autores mais celebrados da literatura nacional e defende que suas criações devem ser avaliadas sob a luz dos contextos político e social em que foram desenvolvidas. Leia a conversa na íntegra abaixo.
ENTREVISTA: CLEO MONTEIRO LOBATO
JORNAL DO COMMERCIO - Cleo, a partir de quando você teve a ideia de revisitar e reeditar a obra de Monteiro Lobato?
CLEO MONTEIRO LOBATO - Moro nos Estados Unidos há 23 anos e há tempos venho pensando em traduzir Monteiro Lobato para o inglês com a intenção de tornar Lobato conhecido aqui (nos EUA). Essa ideia ficou parada por anos, pois apesar de falar inglês desde os 6 anos, ser fluente, morar aqui, eu não tinha o conhecimento das técnicas de tradução e não me sentia capaz de fazer-lo e manter a integridade e o espírito dos livros do meu bisavô sem fazer alterações demasiadas. Também tinha muitas dúvidas se os americanos se interessariam por um escritor brasileiro, mesmo ele sendo tão importante no Brasil.
Além disso, à medida que eu ensaiava diversas tentativas de traduzir, notei que o personagem da Tia Nastácia estava muito parecido com as empregadas do Sol dos Estados Unidos, Aunt Jemima*, e eu tinha certeza de que teria problemas sérios se publicasse os livros de Lobato com aquela Tia Nastácia tradicional. Em paralelo, tivemos a eleição de Trump e um acirramento de manifestações racistas contra muçulmanos, contra afro-descendentes, contra imigrantes mexicanos e homossexuais. Sempre fui muito ativa politicamente aqui, participando de manifestações 20 anos atrás, quando ainda nem tinha minha documentação legalizada. A evolução do movimento negro explodiu com a eleição de Trump e não havia mais como não tomar conhecimento deste assunto e do crescente preconceito contra mulheres e negros aqui nos EUA.
No ano passado, bem na época que minha editora, Nereide Santa Rosa, da Underline Paublishing (também imigrante) estávamos decidindo como melhor adaptar Lobato e manter a integridade e a magia da obra dele, aconteceu o assassinato de George Floyd. Foi um acontecimento marcante e decisivo. Saímos à rua, meu marido, filho e eu, todos de máscara, junto com metade da população da minha cidade, protestando contra a violência policial contra os negros. Foi aí que a decisão de como revisitar e exatamente o que modificar na obra de Lobato se cristalizou.
Lobato escreveu seus livros infantis para crianças. Decidimos que este seria nosso enfoque, adaptaríamos o primeiro livro infantil de Lobato, Reinações de Narizinho, em fascículos igual foi editado originalmente por Lobato. Teríamos ilustrações grandes e coloridas para as crianças poderem acompanhar, mesmo sem saberem ler - A Menina do Narizinho Arrebitado foi uma revolução gráfica, com ilustrações coloridas em todas as páginas, revolucionando o livro infantil quando foi publicado originalmente em 1920. Decidimos colocar um glossário no final, definindo as palavras difíceis e explicando as mudanças feitas. Decidimos fazer uma introdução contextualizando as diferenças entre 1920 e 2020. E do ponto de vista de adaptação, decidimos focar no personagem mais desatualizado socialmente do livro: a Tia Nastácia.
Todos os outros personagens de Lobato continuavam atuais e relevantes. Narizinho, muito à frente do seu tempo em 1920, continuava atual; Pedrinho e Dona Benta também; Emília absolutamente! Mas Tia Nastácia estava absolutamente desatualizada. Isso mostra diversas coisas: que a obra de Lobato continua atual, contemporânea, não envelheceu e deve ser lida, pois discute temas importantes. Mostra também que a sociedade brasileira tinha evoluído muito na questão social/racial. E mostrava claramente a necessidade de se atualizar Tia Nastácia para a obra de Lobato continuar atual e relevante.
Na nossa atualização, Tia Nastácia passa de ex-escrava, analfabeta - refletindo a situação real da maioria dos negros da época - para ”amiga de infância” de Dona Benta, refletindo a evolução social do negro no Brasil - ela continua simpática, quituteira, acolhedora e símbolo da sabedoria popular que sempre foi. Mas não é mais ignorante. Usei o recurso de novas ilustrações para dar força ao texto. Meu ilustrador é o Rafael Sam, do Recife, que deu uma injeção de orgulho na Tia Nastácia, criando uma nova imagem que até as filhas dele acharam ótima.
Esse ponto é muito importante. O que a criança lê e as imagens associadas ao texto que a criança vê ficam lá no fundo, no subconsciente da criança. Quando uma criança lê sobre e vê um personagem como ela num livro, ela se identifica e isso tem um poder muito grande na formação de sua personalidade.
JC - Como bisneta, como você administra as relações familiar e profissional com o legado de Lobato, para que ambas não se misturem de forma que atrapalhem uma à outra?
CLEO - Pergunta muito interessante. Essa dissonância cognitiva entre o que eu sabia por ser bisneta e o que eu estava lendo nos jornais há tempos de acusações contra meu bisavô foi o que me motivou a fazer a adaptação, de certa forma. Sou historiadora formada e meu pai era judeu polonês, que chegou ao Brasil aos 11 anos, foragido do Holocausto. Tenho uma necessidade intrínseca de saber a verdade, as causas dos acontecimentos, então fui pesquisar. Tem sido um processo fascinante. Primeiro, fui entrevistar minha mãe, única pessoa restante da família que conviveu com Lobato até seus 18 anos, quando ele faleceu. Foram meses de perguntas que, se tudo der certo, vão virar um documentário sobre as memórias de Joyce (mamãe) sobre Juca (Lobato). Aguardem!
Perguntei extensivamente e de todos os ângulos possíveis sobre atitudes racistas, preconceituosas, a favor de grupos de supremacia e absolutamente nada. Consistentemente minha mãe se recorda de Lobato como generoso, respeitoso de todos, independente do nível social da pessoa, valorizando a ética mais do que a posição social. Toda a relação, tanto de Lobato quanto de Purezinha (Maria Pureza, sua esposa) com as ajudantes da casa e da cozinha são incrivelmente íntimas, de acolhimento, refletindo as diferenças da época, mas também um amor e intimidade e respeito que me surpreende. Um caso é o da prisão. Depois de sair do isolamento e ser colocado com outros presos, Lobato se pôs a ensinar aos presos português, história e outros assuntos. Quando um preso saía da prisão, Lobato escrevia carta de recomendação ao seus amigos pedindo que arranjassem emprego. Depois que ele mesmo saiu da prisão, mamãe conta que por muito tempo apareceram ex-presos na casa de Lobato e ele sempre arranjava emprego. Mamãe também se lembra dos presentes que os presos enviavam agradecendo basicamente o tratamento humano que tinham recebido de Lobato.
Voltando à pergunta: ao longo deste ano, percebi o quanto eu havia sido influenciada por tantas manchetes sensacionalistas ligando Lobato à racismo. Desde 2010, quando iniciou todo o processo contra Caçadas de Pedrinho, que há uma campanha anti-Lobato. Essa campanha tem se desenvolvido paralelamente ao crescimento da consciência e do movimento negro. Minha família nunca deu uma resposta sólida enfatizando que o Lobato pessoa absolutamente não era racista, acho que na época meu pai e minha mãe não tinham conhecimento suficiente do assunto para fazê-lo.
Notei que essa influência estava colorindo o jeito que eu lia Lobato - isso se chama preconceito inconsciente. Ao traduzir a segunda história para o inglês, me deparei com um trecho que descreve as abelhas bebês como brancas e alvas….imediatamente pensei que isso era um indício de racismo e dei um Google para ver como eram “abelhas bebês” - e descobri que são alvas e brancas pois são larvas. Foi um choque mesmo ver como 11 anos de campanha anti-Lobato haviam me influenciado a ver racismo onde absolutamente não existe.
Ano passado organizei um evento celebrando os 100 manos de Narizinho, tivemos 700 inscritos e pude conhecer quase todos os estudiosos de Lobato. Hoje estou organizando um movimento pró-Lobato. Hoje existem profissionais sérios fazendo uma analise do que era eugenia na época, do que era a literatura na época e qual era o papel do negro naquela época na literatura. Ao longo deste ano veremos essas informações e análises serem publicadas e espero que possamos ter uma outra visão deste debate.
JC - Há quem aponte a reedição da obra de Monteiro Lobato quase como uma mácula, por se tratar de produções consideradas clássicas. Como você vê essas críticas?
Fiquei surpresa com a ferocidade das críticas. Primeiro porque a maioria da pessoas não leu meu livro. Estão falando só na teoria. Eu aprendi que a gente só pode criticar depois de ler, por pesquisar a respeito... Percebi, acima de tudo, como Lobato é um ícone, como está arraigado na consciência nacional, no coração de todos, e mexer num ícone é, de certa forma, criticar este ícone. E as pessoas ficaram muito bravas! Mas também houve centenas de outras pessoas de todas as raças que entenderam o meu propósito e me parabenizaram me dando força. Eu particularmente desejo que Lobato seja lido pelos próximos 80 anos e que continue a encantar as crianças e influenciar nossos futuros homens e mulheres de maneira positiva.
CLEO - Como você espera que as novas gerações se relacionem com a obra de Monteiro Lobato? Que lições educadores e familiares podem ensinar aos pequenos de hoje a partir da revisão do que foi deixado por ele?
Considero o papel do professor fundamental! Uma das profissões mais desvalorizado e mais mal remuneradas e das mais importantes. Lobato é Lobato. Usando os livros tradicionais ou minha nova edição, Lobato traz um conteúdo riquíssimo para o professor trabalhar, especialmente se o professor não tiver ideias pré-concebidas e deixar os alunos perguntarem e explorarem todas as questões que Lobato traz. É realmente incrível como Lobato faz do ato de aprender algo divertido. Eu acho que essa é uma das melhores lições dos livros de Lobato, que aprender é divertido e gostoso; que descobrir as causa das coisas é super interessante; que mudar de ideia e de opinião depois de conhecer mais fatos é algo bom e não vergonhoso. Lobato ensina a termos a mente curiosa e aberta e a fazer perguntas. Agora, se você quiser ler Lobato sem ter de se preocupar com polêmicas, ou ter que explicar relações sociais e raciais após o final da escravidão, então leia a nova versão que fiz. Agora em abril estamos publicando o segundo livro, O Sitio do Pica-Pau Amarelo, também à venda no Brasil, lançado pela Underline Publishing e novamente com ilustrações de Rafael Sam.