Mês da Abolição

"A escravatura atual é a fome", disse Carolina Maria de Jesus, em 1958; Alguma semelhança com os dias atuais?

Em seu livro Quarto de Despejo, escritora descreveu a fome sem intermediários e disse que ela é amarela. Passados 61 anos, Brasil vê número de pessoas em situação de insegurança alimentar aumentar

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Adriana Guarda

Publicado em 24/05/2021 às 17:05 | Atualizado em 24/05/2021 às 17:09
Abolição da escravatura - Thiago Lucas/ Artes JC

Carolina Maria de Jesus teve, durante anos, encontros diários com a fome. Tentava despistá-la, mas ela aparecia, como um fantasma, dentro do barracão onde vivia com os três filhos, na Favela do Canindé, em São Paulo. No seu livro Quarto de Despejo (1960), ela escreveu sobre a fome que se sente, não sobre a fome que se fala nos discursos. Um dia, Carolina lhe atribuiu cor: "Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito". Amarela da cor da bile que se vomita quando o estômago está vazio, amarela como o seu mundo embaçado pela tontura.

Quarto de Despejo vai completar 61 anos em 2021 - Arte de Thiago Lucas

Quarto de Despejo traz a crueza da vida real de quem acorda com medo de não arranjar dinheiro para comer e dorme sem saber como será o dia seguinte. Mais de seis décadas depois do lançamento do livro, mais homens, mulheres e crianças estão passando fome no Brasil. São 19 milhões de pessoas sem ter o que comer, em sua grande maioria mulheres, pessoas negras e com baixa escolaridade. A pandemia da covid-19 escancarou as desigualdades.  

Nestes últimos dias deste mês de maio, que simboliza a abolição dos povos escravizados, - mas não do fim do racismo e da desigualdade -, vale a pena relembrar o diário de Carolina do dia 13 de maio de 1958 e as muitas passagens sobre a fome. 

Era uma terça-feira chuvosa e ela não conseguiu sair para catar papel nem comprar comida. Estava com apenas dois cruzeiros e precisou pedir ajuda aos vizinhos. Carolina e os filhos João José, José Carlos e Vera Eunice só conseguiram comer por volta das 21h. No final do dia, ela escreveu em seu diário: 

 - E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - a fome!  

Capa comemorativa aos 60 anos do livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus - Divulgação

Trechos do Quarto de Despejo*

Ninguém falou sobre a fome como Carolina Maria de Jesus, com dor, revolta e consciência política. Às vezes com muito desespero, imaginando que a morte poderia ser melhor do que a fome. Às vezes como uma festa, vendo a alegria dos filhos ao ter o que comer. Também como uma humilhação, por ter que apanhar alimentos do lixo. Muitas vezes com angústia, ao ouvir os filhos pedindo mais e não ter como saciar-lhes a vontade. Em outros momentos com revolta dos políticos e dos falsos caridosos. Pouquíssimas vezes como fartura. 

Para os políticos: 

"(...) O que eu aviso aos pretendentes a política, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la". 

"(...) O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças".  

Carolina se levantava todos os dias em busca de conseguir dinheiro para comer - Acervo Última Hora

Filhos para alimentar:

"Como é horrível ver um filho comer e perguntar: 'Tem mais? Essa palavra tem mais fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais". 

"(....) Quando cheguei do palacio que é a cidades os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu filho João José disse-me: 'Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo'. Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar". 

"Fiz a comida. Achei bonito a gordura frigindo na panela. Que espetaculo deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas. Ainda mais quando é arroz e feijão, é um dia de festa para eles". 

Carolina gostava de ouvir valsas vienenses e dançava com os filhos - Acervo Última Hora
 

"As vezes eu ligo o rádio e danço com as crianças, simulamos uma luta de boxe. Hoje comprei marmelada para eles. Assim que dei um pedaço para cada um percebi que eles me dirigiam um olhar terno. E o meu João José disse: - Que mamãe boa!"

Vontade de morrer:

"Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobes de outro país sofrem igual aos pobres do Brasil?". 

Comida estragada: 

"Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: É assim que fazem esses comerciantes insaciaveis. Ficam esperando os preços subir na ganancia de ganhar mais. E quando apodrecem jogam fora para os corvos e os infelizes favelados. 

Não houve briga. Eu até estou achando isto aqui monotono. Vejo as crianças abrir as latas de linguiça e exclamar satisfeitas: - Hum! Tá gostosa!

A Dona Alice deu-me uma para experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre". 

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*Assim como no livro, nesta matéria foi preservada a escrita de Carolina (com a pontuação e acentuação original). 

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