Poucos artistas suscitam o fascínio que Ney Matogrosso provoca sobre o Brasil há quase cinco décadas. Sua voz poderosa, inclassificável, e suas performances já desafiavam o binarismo de gênero e os padrões sexuais desde a época da ditadura militar - e continuam a servir como farois que iluminam caminhos em um Brasil que volta a exaltar discursos preconceituosos e excludentes. Essa trajetória fascinante é tema do escritor e jornalista Julio Maria no novo livro Ney Matogrosso: a biografia (Cia. das Letras, 512 páginas, 89390).
O livro é fruto de uma pesquisa detalhada que durou cinco anos e contou com centenas de entrevista. A trajetória é abordada em detalhes, partindo da infância no Mato Grosso, sua estrutura familiar e as primeiras descobertas e inquietações em relação à sexualidade e às inquietações artísticas. A paixão pelo teatro, que aflora quando Ney vivia em Brasília, logo o leva para o canto e já nas primeiras apresentações a singularidade da sua voz, com timbres que remetiam ao feminino, chamam a atenção (de admiradores e também de detratores homofóbicos). Para os pernambucanos, uma ausência sentida nesta primeira parte é o relato do período que o artista morou no Recife quando criança.
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O início do Secos & Molhados, grupo que integrou e que marcou história na música brasileira com suas performances irreverentes, roupas e maquiagens provocantes, teatrais, é apresentado com riqueza de detalhes. Um fato interessante é o de que Ney, que tinha 31 anos quando participou, gravou seu disco de estreia, nunca tinha comprado um LP e tinha poucas referências do pop e do rock. "Ney sentia-se estranho até perceber que seu trunfo estava justamente no fato de não querer se parecer com ninguém", escreve Julio Maria.
O disco dos Secos & Molhados foi um fenômeno que desafiava toda a lógica de policiamento da liberdade e sexualidade da ditadura militar. Mas, não demoraria para que Ney assumisse voo solo, com o lançamento de Água do Céu - Pássaro (1975), logo seguido por Bandido (1976) e uma série de álbuns anuais, ritmo que manteve até o início dos anos 2000. Os detalhes sobre as gravações dos discos, os shows e bastidores da indústria musical são um deleite e mostram a importância de Ney e seu caráter camaleônico desde cedo, desafiando todas as convenções em que quiseram enquadrá-lo.
Outro destaque no livro é a relação de Ney com Cazuza, com quem viveu um amor intenso e, acima de tudo, uma amizade que se manteve fortalecida até a morte do cantor e compositor, em 1990, aos 32 anos, por complicações causadas pelo HIV (Além de Cazuza, Ney se relacionou com Marco de Maria, também diagnosticado com a infecção, mas não contraiu o vírus).
A obra conta com a reprodução de um delicado bilhete escrito por Cazuza, parte do vasto material fotográfico contido na obra. Julio Maria posiciona acontecimentos históricos, como a eclosão da epidemia da Aids, em diálogo com o que estava se passando na vida e na obra de Ney, mostrando que o cantor sempre esteve atravessado pelas questões do seu tempo, estivessem elas explícitas ou não nas suas obras.
NEY HOJE
O livro fala da trajetória de Ney Matogrosso até os primeiros meses de 2021 e conta como o artista lidou com a chegada da covid-19 ao Brasil. Com shows suspensos, ele ajudou por meses sua equipe de músicos com pagamentos para amenizar a falta de trabalho. Ele se isolou para cuidar de si e de sua mãe de 98 anos e saiu pouquíssimo. O livro conta que o artista foi infectado pelo vírus, mas não desenvolveu sintomas.
A obra pontua que, com a chegada da vacina (ele já tomou as duas doses), Ney sonha com a volta aos palcos. Enquanto o momento não chega, se dedica à gravação de músicas, expandindo seu já precioso repertório.