Ao subir num palco, Alceu Valença transita, ainda que de forma imperceptível, por diferentes personas. Os frevos trazem determinados tons vocais, enquanto os ritmos oriundos do Sertão evocam outros timbres e trejeitos. É neste segundo lado que o ouvinte pode mergulhar em "Senhora Estrada", lançado no final de novembro como último álbum da trilogia acústica gravada durante epifania produtiva na pandemia - "Sem Pensar no Amanhã" e "Saudade" também foram lançados neste ano.
Com releituras de Luiz Gonzaga e canções autorais, Alceu resgata todo o potencial junino de sua obra para a linguagem já conhecida da trilogia: voz e violão. "É a música do sertão profundo", resume o cantor, em entrevista ao JC. O conceito é reforçado pela capa, em que o artista aparece em um milharal. "Estávamos na estrada em São Paulo quando vi o milharal, mandei parar o carro. Me lembrou um milharal de São Bento do Una. Foi uma coisa espontânea", conta sobre a foto, tirada pela esposa Yanê.
"Eu tenho várias culturas. Já morei no Recife e conheço o frevo, o maracatu e a ciranda, mas com a cultura do sertão profundo tenho uma intimidade ainda maior, pois sou de São Bento do Una, no Agreste Meridional. Pequeno, eu ouvia na minha terra os aboiadores no meio da caatinga, o meu avô e meu tio fazendo desafios de viola, os sanfoneiros de oito baixos nas feiras, o berimbau de bacia, que é meio árabe. Eu ouvia Luiz Gonzaga cantar no alto-falante do Cine Rex. Toda essa cultura entrou na minha cabeça de uma maneira natural e espontânea. É a minha formação primal", diz Valença.
Assim como ocorreu nos discos anteriores da trilogia, "Senhora Estrada" também foi pensado como uma espécie de roteiro cinematográfico, com uma ordenação que tem um propósito. Alceu abre o repertório com "Pau de Arara", composição do pernambucano Guiam de Moares lançada por Gonzagão em 1952. O ponto de partida faz menção ao transporte usado no êxodo de nordestinos. "Luiz Gonzaga pegou um pau de arara, já eu peguei um ônibus para vir pra cá. Hoje as pessoas pegam avião (risos)", comenta Alceu, que vai explicando como uma audição guiada.
O álbum segue com o xote "Numa Sala de Reboco" (1965), outro clássico de Gonzaga com Zé Marcolino, a autoral "Pé de Rosa", do álbum "Forró Lunar" (2001). "Pra quem sofre de dor de cotovelo / Remédio é forró, xote e baião", canta, entre dedilhadas. Alceu ainda traz releituras íntimas de "Depois do Amor" e "Flor de Tangerina" - que, de acordo com sua comunicação, foi bastante pedida pelos fãs mais jovens. A partir de "Vai Chover", parceria com Herbert Azzul, Valença entra em canções bastante constantes em seu repertório: "Coração Bobo", "Pelas Ruas que Andei" e "Cabelo no Pente". (Continua após galeria)
O encerramento se dá com "Senhora Estrada", a única inédita. "Nessa música, pegamos novamente o pau de arara. Acho que falo sobre os meus deslocamentos: são terrestres, fluviais, marítimos e muitas outras coisas." A canção foi idealizada para o filme "A Luneta do Tempo", dirigido por Alceu. "Quando fiz a edição, segui uma máxima de cortar 'na carne' até mesmo o que fosse bom em nome do filme, do roteiro. Existiam cenas maravilhosas que cortei porque não ficavam bem, mas a música sozinha era linda. O mesmo ocorre quando vou fazer um disco. Eu tenho várias músicas inéditas, mas 'Senhora Estrada' coube melhor dentro desse disco", explica.
Valença admite que, estimulado pelos álbuns acústicos, fará uma turnê nessa linguagem pela Europa. O músico se mostrou maravilhado com as possibilidades que a internet dá para a música. "É uma coisa que abre muitas fronteiras, né? Abre ouvidos e tudo mais. O pessoal viu lá esse disco e me chamou para fazer essa turnê." Ele segue discorrendo sobre as plataformas, falando orgulhosamente de seus números:
"A internet, se você for olhar, é uma coisa que ninguém explica. Os virais não têm nada a ver com gravadora. La Belle de Jour chegou a 192 milhões de acessos no YouTube. Existe um vídeo de uma russa, uma inglesa e uma americana chorando juntas ouvindo essa música. Outro vídeo mostra 'Anunciação' sendo cantada em uma paródia da torcida do Cerro Porteño, um clube de futebol do Paraguai."
Ainda em confluência com a temática do álbum, que resgata as suas raízes, ele faz uma reflexão em torno das mudanças que o consumo de música digital proporcionou. "Antigamente éramos dominados pelas músicas anglófonas, embora eu não tenha largado a minha cultura afro-americana-lusitana-ibérica. Eu nunca me curvei. Mas agora, quando olhamos esses resultados na internet, acredito que o Brasil acabou tendo um destaque muito bom", finaliza. "Aproveitando que meu álbum é de forró, você já viu um vídeo de japoneses desfilando ao som do forró? (risos)."