Em 1953, Elza Soares teve o seu primeiro contato com um meio de comunicação ao participar do programa "Calouros em Desfile", apresentado por Ary Barroso. Vítima da pobreza que atravessa a história do Brasil, ela usou um vestido da mãe, ajustado com alfinetes, e um penteado improvisado. Tentando caçoar da anônima, Barroso perguntou: "De que planeta você veio, minha filha?". Ela rebateu: "Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary. Do planeta fome."
Esse mesmo problema social, já tão investigado por Josué de Castro, nunca saiu do imaginário de Elza Soares, que morreu nesta quarta-feira (20) de causas naturais. Mas ela deixou esse planeta para habitar a eternidade, dando voz a tantas outras potências e talentos que não puderam driblar as desigualdades.
Naqueles idos da metade do século 20, Elza ia contra uma certa vitrine que se criava do Brasil industrializado. Juscelino Kubitschek era o "presidente bossa nova", ligado à uma modernidade que tentava esconder as mazelas do país. No auge da bossa nova, ritmo que vinha de uma classe média carioca branca, ela desceu o morro com orgulho de ser negra. A raça sempre foi um tema presente em canções e entrevistas - o seu segundo álbum, inclusive, foi intitulado "Bossa Negra".
A voz potente e rouca impactou a música brasileira até os últimos dias de vida. A grande intérprete lançou mais de 30 discos em sua carreira, entre altos e baixos. Na participação do programa de Ary Barroso, cantou "Lama", de Paulo Marques e Aylce Chaves, e ganhou a nota máxima. Mas o sucesso não chegou rápido: foi apenas em 1959, com a canção "Se Acaso Você Chegasse" (Lupicínio Rodrigues).
No primeiro minuto da canção, ela já entoa o seu vocal rouco. "Lupicínio foi o compositor que me deu vida como ser humano. Quando ele me deu 'Se acaso você chegasse', me deu condições de morar bem, e criar meus filhos", disse, em 2015.
A vida de Elza Soares foi impressionante em vários aspectos. Aos 12 anos, foi obrigada a se casar com Alaúrdes Soares, homem dez anos mais velho. Com ele, teve três filhos - dois morreram de fome, pois o casal não tinha recursos para se manter. A viuvez foi tão precoce quanto a maternidade.
Teve presença ativa em eventos que entraram para a historiografia da música popular brasileira. Ficou em segundo lugar no Festival de Música Popular Brasileira 1966 com "De Amor ou Paz", atrás apenas do clássico "A Banda”, de Chico Buarque e Nara Leão. Na edição em 1968, ganhou desse mesmo evento o prêmio de melhor intérprete feminina com "Sei Lá, Mangueira".
Já famosa, a cantora conheceu o jogador Garrincha (1933-1983), que morreu há exatos 39 anos, em 20 de janeiro de 1983. Com a chegada da ditadura militar, ela ficou mal vista pelo regime por ter gravado um jingle para a campanha que levou João Goulart à vice-presidência. Em 1970, teve sua casa metralhada no Rio de Janeiro e se exilou na Itália.
Apesar das adversidades, Elza sempre reergueu com trabalhos elogiados. Foi considerada a "voz do milênio" em uma votação de 1999 da rádio BBC de Londres, mas o melhor exemplo desse reconhecimento é que, em 2015, ela voltou a ser cultuada por diferentes gerações com o lançamento de "A Mulher do Fim do Mundo", seu primeiro disco totalmente inédito em mais de seis décadas de carreira.
Esse disco entrou na lista de dez melhores álbuns de 2016 pelo jornal "The New York Times". A faixa "Maria da Vila Matilde" se tornou um hino contra a violência doméstica. Isso tudo fez com que ela tivesse um bom reconhecimento já no final da vida, como mereceu. Teve shows lotados, discos aclamados, biografia e até um musical.
Apesar da idade avançada, entrou em total conexão com embates dos nossos tempos. Em entrevistas, sempre deu falas contundentes. "Fui muito ajudada pelo mundo gay e tenho por eles o respeito imenso, o carinho imenso por eles", disse em um programa de TV, em 2018. "Eu brigo muito pelas mulheres, pelos gays. Ninguém tem culpa de ser o que é. Eu brigo muito pela raça também."
Seu último álbum teve o título com uma referência do começo: "Planeta Fome" (2019). Na faixa-título do "A Mulher do Fim do Mundo", inclusive, Elza entoa que "vai cantar até o fim". Seu grito permanecerá vivo.
Elza Soares, ainda moça em flor, arrebatou a plateia ao performar De Amor ou Paz no festival de música popular da Record, em 1966. Ano antes, o hit veio no álbum Um Show de Elza, em que ela interpretou clássicos, como Ocultei, de Ary Barroso ao Samba da Minha Terra, popularizado nas vozes de João Gilberto e Dori Caymmi (que a compôs).
Acrobática, Elza interpretava nos palcos como uma rainha com cílios postiços, explosão de cores e malemolência. O vigor da juventude se manteve, mesmo como tímida chama, em shows incendiários dos últimos anos, como quando a cantora cantava sentada, até mesmo deitada, como na performance de A Mulher do Fim do Mundo.
A Elza dos últimos anos, uma diva pop com cabeleira arroxeada e figurinos arrojados que viraram álbum (A Mulher do Fim do Mundo) a pôsteres veio de encontro com uma nova geração, os Millenials, que a abraçaram pelo movimento da cantora de se manter atemporal
Elza, já senhorinha, sentava-se no trono e fazia um coro jovem vibrar, ao começarem os acordes de Malandro, clássico absoluto em sua voz. Das músicas que permanecem eternizadas em sua interpretação, Aquarela Brasileira é um capítulo à parte. Cantada em um Globo de Ouro de 1980, Elza Soares, Martinho da Vila, Clara Nunes, Beth Carvalho, Alcione, Nelson Rufino, Benito Di Paula, Jair Rodrigues, João Nogueira e Chico da Silva cantam o hit escrito pelo poeta Martinho da Vila.
Elza Soares teve a voz emprestada a múltiplas produções, como novelas e propagandas. Das que marcaram geração, Façamos, em parceria com Chico Buarque, foi tema de abertura de Desejos de Mulher (2002), da rede Globo. Nos últimos anos, Elza viajou com a turnê Deus é Mulher (2019), participou de Rock in Rio (2017) e teve diversas aparicções na televsão, em shows curtos, como nos programas de Pedro Bial (2017) e Serginho Groisman no Altas Horas (2018).