A desinformação foi o grande centro de debates durante a pandemia. Sobretudo, porque correntes que vão contra a ciência passaram a impactar diretamente nas políticas de combate à covid-19 - tendo o Brasil como um dos maiores exemplos. Na última semana, o tema voltou à discussão através do podcast "The Joe Rogan Experience", veiculado exclusivamente no Spotify, o que foi denunciado pela comunidade científica por propagar informações falsas sobre os efeitos da vacina contra o coronavírus. A plataforma de streaming manteve o programa no ar, perdeu ações, e levantou outras questões: opinião e desinformação estão no mesmo patamar? Há a obrigatoriedade da empresa retirar o conteúdo do ar? Que ações efetivas o Spotify poderia ter feito para combater as informações falsas veiculadas no podcast?
Conhecido pelo longo histórico de piadas consideradas "politicamente incorretas", Joe Rogan tem o programa mais ouvido dos Estados Unidos, sob um contrato de exclusividade de 100 milhões de dólares pagos pelo Spotify. No podcast, ele convida personalidades para debater sobre variados assuntos. Em dois deles, o apresentador incentiva jovens a não se vacinarem contra a covid-19 e o uso de ivermectina como método profilático da doença - comprovado cientificamente que sua ineficácia. Em um vídeo publicado nas redes sociais, ele resumiu a intenção de "falar a verdade, estou interessado em descobrir qual é a verdade e em ter conversas interessantes com pessoas que têm opiniões diferentes".
Apesar da pressão da comunidade científica e de artistas, a exemplo de Neil Young e Joni Mitchell - que retiraram suas músicas da plataforma -, o Spotify não apagou o conteúdo. Apenas restringiu a informar sobre a covid-19 nos podcasts que são publicados sobre o tema, levando os ouvintes a uma central de informações sobre a pandemia. "Essas são as regras para guiar todos os nossos criadores – daqueles com quem trabalhamos exclusivamente àqueles cujo trabalho é compartilhado em várias plataformas", limitou o CEO e cofundador, Daniel Ek, com a perda de mais de 2 bilhões de dólares em ações.
Entendo o contexto do próprio país em que o material é veiculado - os Estados Unidos -, a plataforma não teria obrigação em retirar o programa sob a perspectiva jurídica. "Neste sentido, salvo se houver disposição contratual anterior, não é possível exigir com que o podcast em questão ficasse obrigado a deixar de emitir sua opinião sobre um determinado assunto, sob o alegado risco de violação à liberdade de expressão. É bastante comum que apresentadores exijam de seus empregadores que haja a garantia de liberdade para as suas opiniões, sendo aspecto fundamental da formação dos Estados Unidos da América que as opiniões somente sejam submetidas a um exame de mérito de a posteriori, por exemplo", disse Daniel Marinho, sócio de Privacy e PI do PDK Advogados.
O especialista pontua, no entanto, que o tema abrange debates que atingem a saúde pública, ainda mais em um ponto que o mundo vive os mesmos desafios, tendo como base as entidades de saúde e ciência. "Trata-se de tema de relevante importância para os dias de hoje, principalmente pelo aumento da fiscalização e regulação às empresas conhecidas como Big Techs, as quais passam a ser constante alvo de moderação de seus conteúdos e plataformas", afirma Marinho.
Ele ainda reitera que um podcast como o de Joe Rogan vai em desencontro às próprias políticas internas do Spotify e a empresa poderia ter retirado seu programa do ar, sob o ponto de vista desses posicionamentos. "Portanto, como o Spotify possui uma política interna com um claro posicionamento sobre o que é considerado conteúdo perigoso, enganoso, sensível e ilegal, a empresa poderia remover o conteúdo da plataforma em decorrência da violação de seus termos", complementou Marinho.
Circuito de desinformação
O tema não atinge sobre somente o ponto jurídico. Para Alice de Souza, jornalista, mestre em indústrias criativas e pesquisadora de desinformação, a desinformação tem um alcance muito grande por causa da forma como ela dissemina. "A outra questão é o próprio alcance das plataformas. O streaming hoje tem uma grande penetração na sociedade. É muito difícil encontrar uma pessoa de classe média que não tenha acesso a uma plataforma de streaming. Então, você soma as duas potências de audiência (a desinformação por si só + os meios de disseminação) e os danos podem ser vários", afirma a jornalista, que é autora do livro "O Grande Boato" e criadora da plataforma Confere.ai, medidor de desinformação do JC.
Com o Spotify, a desinformação é validada - já que o conteúdo, por mais que não seja verdadeiro, circule dentro de um canal confiável. "Se você está numa plataforma que considera como o Spotify, por mais que não seja uma informação produzida por ela, o Spotify credibiliza quando abre espaço. Existe uma discussão sobre a liberdade de expressão quando essas plataformas mantém esse tipo de conteúdo, mas essa desinformação causa dano. Esses danos podem ser vários, quanto mais pessoas forem atingidas, como a própria vacina: se a pessoa não vacinar, pode morrer ou infectar mais pessoas", diz Alice sobre os danos provocados pela desinformação.
"Há um falso entendimento sobre liberdade de expressão, porque o conceito dele não pressupõe que eu posso dizer qualquer coisa, em qualquer lugar ou em qualquer momento. Porque há regras e condutas sociais que mediam as nossas relações sociais, em que eu falo aquilo que penso desde aquilo vá causar danos a outras pessoas, desde aquilo não vá contra as leis ou cercear a democracia", aponta a jornalista e pesquisadora.