Histórias improváveis.
Elas são o mote de diversas novelas, desde a menina abandonada em um lixão, até a mãe que, desesperada, troca o seu próprio bebê pelo da filha.
A força da teledramaturgia brasileira se apoiou por décadas, em grande parte, em personagens que, dia após dia, se tornavam mais reais aos olhos do público, mas que viviam histórias nada comuns.
"Isso é coisa de novela", diziam os críticos, ou até mesmo os fãs do formato, em certos momentos de desagrado com as histórias.
Mas a verdade é que muitas dessas obras só conquistaram o Brasil por conta de tramas nesse estilo - possíveis o suficiente para fisgar a atenção e improváveis o suficiente para se destacar em meio à realidade.
Raramente na esfera do impossível, mas sempre na do extraordinário.
"Pedaço de Mim", que estreou nesta quinta (05) na Netflix, não é vendida como novela, mas parte de uma trama tão improvável, forte e extraordinária quanto a dos mais clássicos folhetins.
A partir da história de uma mulher (e mãe) em um conflito único, a nova produção de 17 capítulos mistura elementos já conhecidos dos noveleiros com outros, de outros gêneros, como as séries.
Nos 4 primeiros episódios disponibilizados com antecedência para a imprensa, a experiência gera ruídos, mas também grandes momentos, e uma história impossível de largar.
As várias faces da história
Juliana Paes é a face do grande conflito em "Pedaço de Mim". Sua personagem, Liana, tem que conviver com o fato de que gesta dois bebês - um gerado por seu marido Tomás (Vladimir Brichta), e outro por meio de um estupro cometido por Oscar (Felipe Abib).
Nos primeiros capítulos da trama, quase tudo orbita em torno de Liana, que vive um turbilhão de sentimentos. Dúvida, frustração, raiva, incerteza. Vemos o processo da personagem assimilar que foi abusada e a dura decisão sobre o que fazer em relação ao bebê gerado por seu abusador.
Conflitos sobre maternidade são muito comuns em novelas e, dessa vez, eles ganham contornos especiais tanto pela seriedade do tema tratado quanto pela criatividade.
Foi um grande achado da autora Angela Chaves a história partindo da possibilidade remota - e desconhecida por boa parte do público - de gerar bebês gêmeos de dois pais diferentes.
Na jornada de Liana sobre como lidar com o trauma e o que fazer com a gravidez, a série trata de forma sensível e coerente a vivência de vítimas de abuso e autonomia das mulheres sobre seus corpos, inclusive em meio a possibilidade e interromper a gravidez.
A fortíssima atuação de Juliana Paes fortalece ainda mais o já potente drama e chama atenção a cada cena. Em entrevista ao JC, a atriz destacou como deixou as dúvidas da personagem sobre o que sentia sobre os filhos passar no olho. Isso é nítido e afeta o público na proporção perfeita.
De forma geral, o elenco aparece como grande ponto forte, em uma história em que os personagens "vilanescos" não são apenas uma caricatura do mal e os "mocinhos" também cometem equívocos visíveis.
Isso é bastante perceptível nos papéis de Vladimir Brichta, que está a anos-luz de ser um "mocinho exemplar", e especialmente em Oscar, o abusador interpretado por Felipe Abib.
Por meio dele, a série constrói uma figura de estuprador muito mais próxima da realidade, ao mostrar um personagem que não aparenta de forma óbvia ser um criminoso sexual para quem convive, e que é alguém conhecido da vítima.
Um novo caminho
Juliana Paes e Vladimir Brichta em "Pedaço de Mim", da Netflix
"Pedaço de Mim" se diferencia das novelas também por sua duração enxuta e pelo curto número de personagens.
Para além da trama de Liana, uma das histórias paralelas presentes é a de Silvia (Palomma Duarte), mãe solo de Inácio (Vitor Valle), um adolescente com baixa visão, cuja necessidade por independência é explorada com sensibilidade pela produção.
Ao se envolver com Vicente (João Vitti), um colega de profissão, vemos Silvia esbarrar com algumas percepções que ela tem sobre relacionamentos, que devem ser exploradas em capítulos futuros.
Trata-se de uma trama que nunca ofusca a principal, mas também tem seu merecido espaço, sendo mais um ponto positivo nos quatro episódios, que não deixam de trazer certas problemáticas.
Mesmo com uma história forte e atuações que chamam a atenção, o texto frequentemente salta aos ouvidos por um certo excesso de diálogo expositivo.
É comum que os personagens falem em voz alta coisas que o público teria capacidade de entender por si só. Ou que poderiam ser ilustradas de uma forma mais destrinchada por meio de mais cenas ou capítulos, ao invés de serem resumidas em poucas falas.
Ao mesmo tempo, algumas viradas do roteiro parecem ser desenvolvidas mais rapidamente do que mereciam, em especial no que se refere ao momento em que Liana decide o que fazer com o bebê gerado por Oscar. Alguns personagens e situações pediam mais tempo para respirar e "acontecer".
Ambas as situações parecem ser resultado da quantidade enxuta de capítulos da obra, que traz conflitos de novela - fortes o suficiente para render semanas de história - e os condensa em uma obra mais curta.
É verdade que novelas também podem ser marcadas por uma certa "enrolação", mas a grande duração também permite que o momento das histórias seja construído com mais calma e maximize o impacto emocional.
Por exemplo, o que teria sido de "Avenida Brasil" se Tufão tivesse descoberto a traição de Carminha já nas primeiras semanas?
É certo que "Pedaço de Mim" ainda tem muita história para contar para além dos quatro primeiros episódios, mas, nas questões citadas, o andamento rápido da trama - muito mais comum em séries - "roubou" do público uma parte do impacto.
A estranheza acaba por ser um tanto ressaltada pelo uso apenas pontual de trilha sonora e uma direção que caminha entre tons de novela e de série de forma que soa um tanto indefinida.
São questões que, de forma alguma, naufragam o conteúdo na totalidade, mas que chamam a atenção em algum grau.
Trata-se de uma demonstração de que "Pedaço de Mim" é o primeiro exemplar de um formato ainda em construção pela Netflix, buscando unir a tradição das novelas e a modernidade das séries e maratonas de capítulos.
Algumas pedras que formam esse caminho precisam ser melhor alinhadas, mas ele parece estar sendo bem pavimentado, e o resultado é uma produção - de forma geral - cativante.
Com estrelas e força de novela, duração e produção de série, "Pedaço de Mim" tenta agradar públicos dos mais diversos, em uma era em que as formas de entretenimento estão cada vez mais fragmentadas.
Se nos anos 90 a família toda se reunia à frente da TV para a novela das 8. Agora, muitas vezes é cada um por si, com streamings, emissoras, games e redes sociais disputando a atenção de todos.
Em meio a esse cenário, a nova aposta da Netflix tem o que é preciso para reunir, pelo menos em parte, esse público que se fragmenta em cada vez mais em pedaços.
Pois como todas as melhores novelas (e séries, por que não?), é uma história que vai muito, muito além do ordinário.