Em documentário, cineasta negra investiga a relação histórica entre os quartos de empregada e as senzalas

'Aqui Não Entra Luz', de Karoline Maia, está com financiamento coletivo aberto para arrecadar a verba necessária para a etapa de finalização
Nathália Pereira
Publicado em 08/07/2020 às 17:58
Diretora e roteirista, Karoline Maia narra em primeira pessoa com base também em experiências suas Foto: CAMILA IZIDIO/DIVULGAÇÃO


Paulista filha de mãe pernambucana, Karoline Maia era criança quando teve contato pela primeira vez com os meandros escorregadios por onde passam as relações do trabalho doméstico no Brasil. Já adulta, ela, mulher negra, ouviu de uma ex-chefe que deveria “dormir no quarto de empregada, a senzala”. Ambas as experiências se uniram como ponto de partida para que em 2020 a cineasta trouxesse ao mundo Aqui Não Entra Luz, documentário em longa metragem cujo financiamento coletivo para finalização segue aberto até o próximo sábado (11).

Narrado em primeira pessoa, o filme com roteiro e direção de Karoline investiga a historiografia da relação de trabalho nos ambientes domésticos brasileiros, delineando um paralelo entre simbologias e significados semelhantes entre os quartos de empregada e as senzalas. O registro ganhou teaser com foto de arquivo pessoal e a partir do qual ela relembra como se deu a primeira ida à praia: “Queria muito que minha mãe tivesse brincado mais comigo naquele dia. Mas ela não podia, porque estava trabalhando. Ela era faxineira e babá da família que me levou para ver o mar pela primeira vez”.

“A experiência racista que vivi me trouxe questionamentos sobre esses espaços, a senzala e o quartinho, e também me trouxe reflexões e curiosidade sobre o porquê de principalmente a mulher negra estar relacionada a esse lugar. Pode parecer uma coisa bastante óbvia, mas é importante pesquisar para entendermos o óbvio também”, conta Karoline em entrevista por telefone.

Durante quase cinco meses, na fase de estudo, Karoline Maia teve o auxílio de Suzane Jardim – historiadora responsável também pela pesquisa de A Vida Invisível, longa ficcional de Karim Aïnouz -, em um trabalho minucioso de investigação, com viagens e incursões por construções das erguidas ainda na época do Brasil Colônia até as mais contemporâneas. A intenção era, claro, descobrir quais espaços dessas antigas residências eram destinados aos trabalhadores domésticos que viveram ali, mas a necessidade de informação esbarrava ora na omissão, ora na pura falta de registros.

“Chegávamos a palácios, ou espaços onde hoje funcionam museus e perguntávamos: ‘onde as pessoas que trabalhavam aqui dormiam, ficavam?’. Porque quando você vai a esses lugares pouco se fala sobre quem trabalhava lá, apenas sobre quem morava. E a gente sabe que para existir escravidão, capitalismo, alguém precisa limpar a sujeira das pessoas, fazer comida para elas, dar o que é básico. Essas informações eram omitidas ou desencontradas, algo como ‘eu acho que era ali’, sem muita certeza. Assim como acontece com toda a memória negra, os dados sobre a escravidão também não são tão bem preservados”, diz.

PERSONAGENS

Em Aqui Não Entra Luz Karoline entrevista seis mulheres negras, trabalhadoras domésticas moradoras, além de São Paulo, do Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, estados escolhidos por terem sido os que mais receberam pessoas negras escravizadas no Brasil colonial e imperial. Todas as entrevistadas moram ou já moraram em um quarto de empregada.

“Nossa relação acabou sendo bem horizontal. Primeiro porque estávamos em um ambiente bem pessoal, com equipe formada só por mulheres. Segundo porque eu sou, de alguma forma, também personagem do filme, então deixava que elas se aproximassem de mim. Quando ficava difícil para mim, a gente parava (as filmagens), quando ficava ruim para elas, a mesma coisa”, detalha Karoline.

A documentarista explica que ao longo da execução do projeto encontrou uma diversidade de quartinhos de empregadas, tanto em apartamentos, quanto em casas. Os cômodos diferiam em tamanho, localização – alguns estavam totalmente integrados à casa dos patrões, enquanto outros foram relegados a estar mais distantes –, mas todos tinham em comum a característica que dá título ao longa. “O nome vem justamente da reflexão de pensar o quarto de empregada como um lugar onde não entra ventilação, tampouco entra luz”.

Com tantas nuances de raça, gênero e classe a serem discutidas, Karoline Maia tem por objetivo agora arrecadar o valor necessário para finalizar o filme, para que ele chegue em breve ao maior número de expectadores e funcione como ferramenta educativa, dando força ao cinema construído sob outros olhares além do hegemonicamente branco. A vaquinha virtual também tem como destino um fundo de emergência para as mulheres entrevistadas ao longo do documentário e que perderam o emprego ou tiveram renda reduzida por conta da pandemia do novo coronavírus.

A situação da covid-19 no país mudou também os planos de distribuição de Aqui Não Entra Luz, que aconteceria a princípio presencialmente, em cerca de 30 cidades brasileiras, de forma comunitária. Com a impossibilidade de realização de eventos culturais tradicionais, Karoline ainda pensa em uma nova estratégia. De certo, até o momento, é a vontade de que seu documentário funcione como mais um degrau na busca pelo rompimento da lógica racista, elitista e escravocrata que rege não só os vínculos trabalhistas, mas muitas das relações do Brasil contemporâneo.

“Desejo que as pessoas brancas que assistam ao meu filme se façam questionamentos sinceros que possam levá-las, e às pessoas próximas, a mudanças de comportamento, de pensamento, relacionado ao trabalho doméstico, porque ele está intimamente ligado ao racismo estrutural e não dá para falar de racismo sem falar das trabalhadoras domésticas, sobre esse modelo de trabalho que tão claramente é uma herança da escravidão”, diz.

“Depois de tantos anos ainda estamos com esse assunto bastante mal elaborado na sociedade brasileira porque é uma coisa que ninguém vai a fundo para refletir. O trabalho doméstico vai continuar existindo, mas como você pode dar a sua trabalhadora um melhor salário, melhores condições de trabalho, respeito, dignidade? A partir daí a gente também pode começar a questionar outros legados que carregamos da escravidão no Brasil. Temos muitas camadas a questionar”, encerra.

As contribuições com a campanha de financiamento coletivo para finalização de Aqui Não Entra Luz podem ser feitas através do site benfeitoria.com/aquinaoentraluz.

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