Infelizmente não se filmou o festival I Parto da Música Livre, promovido pelo grupo de teatro da Unicap, acontecido numa sexta-feira, 22 de junho de 1973, no Santa Isabel. Luiz Gonzaga esteve lá e cantou a oportuna Sá Marica Parteira (o parto de Sá Juvita), de Zé Dantas. Também passaram pelo palco do vetusto teatro Ave Sangria, ainda como Tamarineira Village, Marconi Notari, e o Phetus, entre outros. O som “prafrentrex” do Recife, segundo as colunas do principais jornais da cidade.
Pra lá de “prafrentex”, no entanto, foi a performance de Flaviola. Com toda a ousadia dos seus 20 anos, ele saiu do roteiro e da linha. Cantou uma música que não estava no repertório, visto com antecedência, e aprovado, pela Polícia Federal. Nem do que esperavam a produção do evento e os próprios amigos. Empunhando um violão, Flaviola mostrou uma canção inédita, cuja letra detalhava um relacionamento sexual entre dois homens, com expressões cruas, sem eufemismos, reforçadas com o gestual. Deve ter sido tão chocante para os policiais, que eles não o interromperam. Porém, ao fim do espetáculo, intimaram o cantor a prestar depoimento no dia seguinte na Polícia Federal.
Passados 47 anos, Flaviola tira do fundo do baú, a música, até então inédita em disco, e faz dela uma das faixas do seu segundo álbum solo, Ex-Tudo (Discobertas). O primeiro, o cultuado Flaviola e o Bando do Sol, é de 44 anos atrás. Ele comenta a música do I Parto como uma curiosidade: “Compus em 1972, e cantei em 1973, com voz e violão, depois pintou aquela coisa sinistra com a Polícia Federal. Nem me soou antiga, nem passada. Não me lembrei dela como do passado, mas é a mesma música do Parto da Música Livre. Na época que compus tinha outro nome, agora é Nunca Vá Embora”
Flaviola esteve muito mal de saúde em 2019. Foram 15 dias de UTI. O amigo D Mingus Porto foi visitá-lo no hospital, e o encontrou, no leito, submetendo-se à uma sessão de nebulização, fios estendiam-se pelos braços, na cabeça. Difícil reconhecê-lo. Porto fez fotos. Uma delas ilustra a capa de Ex-Tudo. A primeira impressão de quase todos que a vêm é a de que se trata de um paciente com covid-19, respirando com ajuda de ventiladores pulmonares:
“Esta capa está pronta desde o ano passado, quando estive internado no Hospital Português, e D Mingus Porto foi me visitar, estava com essa mascara de nebulização. Eu já tinha ideia da capa ser esta, não tem ligação com o coronavírus. A ideia é esta mesmo, soturna, de ruptura, fiquei 15 dias em coma, quis documentar um pouco esta passagem, esta volta por cima que dei”.
Resiliência, expressão que é de bom tom se usar atualmente para superações, encaixa-se na história de Flaviola. Porém lhe sabe melhor a mais popular volta por cima, que deu título ao samba de Paulo Vanzolini, gravado, em 1962, por Noite Ilustrada. Aos 11 anos ele viu a morte de perto pela primeira vez: “Quando era criança, sofri uma paralisação nos rins. Fiquei cinco meses de cama. Minha mãe chamou o médico, e ele disse que, no meu caso, a medicina não podia fazer nada. Eu tenho essas passagens, não sou religioso, mas tenho fé. Tenho um anjo da guarda muito poderoso”, diz Flaviola, falando sem baixo, raramente sobe o volume da voz.
Deve ser realmente poderoso seu anjo. “Eles se livrou também de um câncer, infarto, de fêmur fraturado, e sífilis: Depois que você passa por experiências dessas, tem vontade de pegar as músicas que estão engavetadas e botar tudo na roda”, pondera Flaviola, que tem muita música engavetada. Nunca parou de exercer o oficio de compositor. Só com Lula Côrtes, seu grande parceiro, são dezenas. Tentou com elas um projeto de monta, que envolvia vários músicos locais, mas não conseguiu levá-lo adiante: “Tentei o Funcultura, foi inscrito duas vezes e reprovado. Envolvia muita gente, da melhor qualidade, porém não tiveram a menor simpatia com a ideia do projeto. Mas as parcerias com Lula continuarão a vir à tona, sempre”, comenta Flaviola, sem mudar a entonação da voz, feito se falasse do tempo, amenidades.
REPERTÓRIO
Flaviola fez Ex-Tudo com a intenção de que ele passasse por longe de ser uma sequência de O Bando do Sol, o que muita gente esperava que fosse. Mesmo assim ele se depara com similitudes entre ambos os discos: “No anterior tinha duas parcerias com Lula, neste também tem duas com Lula, sem ser uma coisa pensada. Usei uma letra antiga Sem Tema, que ele fez para O Livro das Transformações, que musiquei. As letras estavam neste livro. Ele tinha feito Crânio, que não tinha nem nome, fui eu que dei. Parece até que ele escreveu esta letra pra mim há pouquíssimo tempo. Tem uma coisa muito recente nela. Fiquei satisfeito com o resultado tanto musical, quanto do aproveitamento da letra”, avalia.
Ex-Tudo começou a surgir quando Flaviola, depois de 25 anos fora do Recife veio à cidade. Descobriu uma geração de músicos que o tinha como referência. Ele se aproximou deste grupo, assistiu a seus shows, frequentou o Terra Café, onde a turma se encontrava e se apresentava. O disco foi delineando-se, Ao mesmo tempo Flaviola teve um reencontro com o Recife que viveu intensamente com a lira dos seus vinte anos. Foi mistura de decepção e surpresa:
“Hoje é muita caretice, ao mesmo tempo, fiquei pasmo, com uma coisa que está dando de vinte a zero no Rio, porque você vai num shopping, na rua, vê casais gays, trans, andando de mãos dadas, se beijando, sem medo de ser feliz, isto não tem no Rio. O Recife tem uma coisa aquariana que é muito louca, está a anos luz, ao mesmo tempo tem um atraso fodido. Você passa por rua com fedor de cocô, esgotos a céu aberto, na zona mais chique do Recife, a Avenida Guararapes, que o tinha Estoril, o Canavial. Kátia Mesel tinha um escritório de arquitetura em cima do Canavial, o Centro tinha cinemas ótimos, cinema de arte no Trianon”.
No álbum o Recife do passado chega ao Recife do presente, num repertório que entrelaça canções recentes com antigas. Uma do passado chama-se O Bando do Sol: “Esta fala sarcasticamente e poeticamente, do que era o bando do sol, que não era uma banda. Era o nome de um disco, com músicos excepcionais que fazem parte do disco. Banda mesmo tive com Robertinho, o Arame Farpado. Na letra fala muito disso, quantos grãos dentro deste grão, acho que é muito atual muito pertinente. Tipo uma resposta que dou a quem queria a mesma sonoridade de Flaviola e o Bando do Sol”, comenta.
A cidade agora chega à faixa Recife Submerso, de D Mingus Porto, composta enquanto ele produzia o disco de Flaviola: “Mingus me propôs uma parceria, porém eu não consegui estender a letra além do que ele tinha escrito, por isso ficou com uma parte instrumenta longa, achei que estava pronta daquele jeito, não precisava de mais nada”.
A sonoridade do disco tem também esta ambigüidade presente/passado. A Ideia, que abre o disco, é uma música lenta, com instrumentos acústicos, arpégios que criam um clima folk que se assemelha ao LP de estreia. A letra é como um Augusto dos Anjos atualizado: “De onde ela vem/de que matéria bruta vem esta luz”, nos versos seguintes termos como “psicogenética”, “estalactites”, “nebulosas”, “moléculas nervosas”. Os arranjos foram concebidos por D Mingus Porto e Júlio Ferraz, que também produziram a faixa.
D MINGUS
D Mingus Porto assina produção e parte dos arranjos do disco, e foi a partir de escuta de seus discos que Flaviola se instigou para fazer o que seria Ex-Tudo. “Mingus tem um papel fundamental, toca a maior parte dos instrumentos. Eu toco violão, faço percussão, reco-reco- vozes processadas, enquanto ele toca guitarra, sintetizador. Tiago Mardito fez a bateria, e tem a guitarra de Juvenil Silva em uma faixa, e Daniel Liberalino, guitarra e synth em Para Não Desesperar. Foi Juvenil Silva, no Abril pro Rock 2015, que fez a aproximação de Flaviola com Mingus. Ambos participaram daquela edição do APR. Flaviola voltou para o Rio com a discografia de Mingus e apaixonou-se pelo que escutou. Tanto que em Ex-Tudo ele gravou Para Não Desesperar, música de D Mingus Porto, que Flaviola ouviu pela primeira vez no APR.
“A ideia inicial nesse disco era Flaviola fazia as bases de violão, aí ele teve um problema nas articulações, e não pode gravar a maioria. Em duas faixas ele toca violão base. Basicamente, eu gravei arranjei, em alguns momentos interagi com outras pessoas. A única que não foi assim foi Mata Hari, que era uma gravação que Flaviola tinha feito com Numa Ciro, parceira dele, que mora no Rio. Uma gravação a capella, neste caso fui eu que interagi com eles”, comenta D Mingus.
Ex-Tudo, é um disco em que Flaviola brinca com o tempo, como Jean-Luc Godard em Alphaville, que se passa em algum lugar do futuro, porém é em preto & branco, e os personagens vestem-se com roupas da época em que foi realizado (1965). De repente, Flaviola puxa dos desvãos da memória Sem Tema, um rock composto antes mesmo do Arame Farpado, o grupo com Robertinho do Recife, que não chegou a gravar, mas que soa como uma música feita para Ex-Tudo. “Não resisti de pescar coisas que foram criadas muito antes de O Bando do Sol, mas e que têm uma contemporaneidade. Meu trabalho sempre foi atemporal. As coisas que peguei lá de trás são bem atuais.”, justifica.
Duas faixas antes ele canta Bambu, um blues. Seguindo com guitarras pesadas, programações em No Centro D’ação. Mata Hari tem blindagem kraftwerkiana, e um refrão com levada à Macarena (o hit do grupo Los Del Rio). Recife Submerso é muito rock and roll, com a bateria frenética. Poder e saber tem a voz juvenil de Théo Brasil (que tem 15 anos). Cada música contém seu próprio tempo, juntas ratificam a relatividade do tempo.