Ennio Morricone, falecido nessa segunda-feira, em Roma, aos 91 anos (92 em novembro), gostava que lhe tratassem por maestro, e não se estendia muito numa conversa em que citassem a música que escreveu para os faroestes italianos, a maioria nos anos 60. Embora seja por essa música que ele é tão admirado, argumentava que foi um capitulo pequeno da sua história, com mais de 500 trilhas sonoras, para filmes de temas os mais variados. Assina por exemplo a música de A Gaiola das Loucas (La cage aux folles, de Edouard Molinaro, 1978), A Coisa (The Thing, 1982), de John Carpenter, ou para Pasolini, Um Crime Italiano (Pasolini Un Delitto Italiano, de Marco Tullio Giordana, 1995). Esta última, uma trilha em que ele mais envolveu pessoalmente, pela amizade que mantinha com o diretor Pier Paolo Pasolini, assassinado em1975.
Ou seja, Morricone não foi um especialista em western spaghetti. Na verdade, sua música passou uma chancela de qualidade aos faroestes italianos, duramente criticados em sua época, e com razão. A maioria era produzida com orçamento barato, dirigidos às pressas visando o faturamento, enquanto estava na moda. Uma das poucas exceções seria Sergio Leone, com quem Morricone fez a música de, entre outros, O Bom, O Mal e o Feio (The Good, The Bad, and The Ugly, 1966), ou o épico Era Uma Vez no Oeste (Once Upon a Time in the West,1968). A música tema do primeiro, foi um megasucesso internacional, e criou um estilo seguido por muitos compositores.
Nascido em 1928, em Roma, Morricone, que estudou na Accademia Nazionale di Santa Cecilia, trabalhou com músicos americanos, ingleses, e canadenses, das tropas de ocupação na Itália, quando a II Guerra terminou. Contou em uma entrevista que tocava em troca do pão. Literalmente. Era pago com comida. Nos anos 50 passou a tocar trompete em grupos de jazz, e foi contratado pela RCA italiana como arranjador. O trabalho para filmes e teatro começou em 1955.
As composições de Ennio Morricone para cinema são a ponta do iceberg de uma obra muito extensa, com centenas de peças eruditas, canções pop (para Paul Anka, Mina, entre vários ourtos), música de vanguarda, com o Gruppo di Improvvisazione Nuova Consonanza, cuja música lamentava ser pouco conhecida pelo público, mesmo o italiano. Com o Nuova Consonanza ele gravou seis discos.
PASOLINI
Particularmente interessantes são os trabalhos em parceria com Pasolini, que o influenciou bastante com suas teorias sobre cinema e música. “Música destinada ao cinema pode ser composta antes do filme começar a ser dirigido, portanto, é apenas quando é aplicada às cenas que se torna música de cinema. Por quê? Por causa do encontro, e eventual amálgama, entre música e imagem possuem características poéticas essenciais. (...), o eu a música adiciona às imagens, ou melhor, a transformação que ela imprime à imagem é um fato de difícil explicação”, trecho de um texto de Pier Paolo Pasolini, escrito a pedido do amigo Morricone.
Ambos realizaram alguns trabalhos juntos em público. Ennio Morricone criava trilhas sonoras para textos de Pasolini, lque os lia, com a música ao fundo, ou com intervenções musicais. Um dessas parcerias chegou ao disco em 1970, Meditazione Orale, texto de Pasolini para os cem anos de Roma como capital da Itália (ele próprio lê o texto), com música de Morricone.
Seguindo o que Pasolini escreveu, Ennio Morricone, em entrevista à revisa inglesa Uncut (em 2015), revelou o método que geralmente empregava para compor: “Gosto de escrever a música antes do filme começar a ser feito, não apenas para os atores, mas também para o diretor. Acho que se você conhece a música antecipadamente, escuta, fica habituado a ela, e a pode assimilar melhor”.
Outra característica da música para cinema de Morricone era a de que ela tivesse vida independente fora das telas, daí ter feito tanto sucesso: “Uma música que tenha força e autonomia. É por isto que apresento concertos com músicas feitas para filmes, porque elas têm uma estrutura própria”.
Das centenas de filmes para os quais fez música, Morricone garantia que não se arrependia da trilha de nenhum. Dizia ter gostado de ter feito trilhas para filmes que sabia de antemão que não fariam sucesso. Nessas trilhas ele ousava experimentações, artifícios, que poderia empregar numa próxima trilha. Arrependia-se, no entanto, de uma trilha que não escreveu, a de O Iluminado (The Shining, 1980), de Stanley Kubrick. Na época ele trabalhava uma trilha para Sérgio Leone, e titubeou em compor ao mesmo tempo para dois filmes. Morricone e Kubrick nunca se encontraram pessoalmente. Trataram da trilha por telefone (Kubrick raramente viajava de avião) Até acertaram para ele fazer e gravar a trilha em Roma. Mas ficaram só na conversa.