A rede de proteção social no Brasil precisará ser ampliada. Em virtude da pandemia do novo coronavírus - acelerando a deterioração que já se fazia presente no mercado de trabalho - a fonte de renda de milhares de brasileiros praticamente sumiu, e, mais adiante, o País estará propenso a um aumento da desigualdade e avanço da extrema pobreza sobre boa parte da população se não conseguir estender o amparo a essas famílias. No cerne da questão, está agora o auxílio emergencial, que paga até R$ 1,2 mil para sobrevivência da parcela mais vulnerável da sociedade. De um lado, o poder público quebra a cabeça para redesenhar o programa, a modo de não mergulhar na calamidade a já complicada situação fiscal do País. Por outro lado, economistas e o próprio governo entendem que o pagamento de uma renda básica por apenas três meses é insuficiente.
Nas contas do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), assegurar o auxílio emergencial até o fim de 2020 pode gerar um impacto positivo de 0,55% no Produto Interno Bruto (PIB) e aumentar em 5 vezes o poder de arrecadação, por manutenção prolongada de um padrão de consumo e melhoria direta ou indireta de renda, dos mais pobres aos mais afortunados.
Criado no mês de abril, o programa do auxílio emergencial tem até agora um custo estimado de R$ 152 bilhões. Até a última sexta-feira, o programa contabiliza mais de 101 milhões de cadastros processados, aproximando-se dos 60 milhões de beneficiários que receberam mais de R$ 55 bilhões através da inscrição no programa Bolsa Família, Cadastro único ou canais digitais da Caixa, no caso dos informais, autônomos e desempregados.
“Seria bom ter esse dinheiro (por) mais um pouco (de tempo). Eu mesma estou desempregada há quase dois anos, e não acho que vai ter emprego, não. Vendo alimentos numa barraca que monto com a minha avó em shows e eventos. A próxima seria São João, não vai ter, e vai ficar muito difícil. Até o fim do ano, não sei como será a volta dessas coisas. Complica. Até mesmo Carnaval, que a gente fatura, não sei se vai ter (em 2021)”, conta Izabelle Silva, 26 anos.
O prolongamento dos efeitos na economia, ocasionados pelas medidas necessárias ao combate da covid-19, não será mitigado com o pagamento de R$ 600 ou R$ 1,2 mil num prazo de 90 dias, na visão da professora de economia da UFMG e do Cedeplar Débora Freire. Para ela, elevar o auxílio ao patamar de renda básica por um ano é necessário é necessário, mesmo que isso implique um embaraço a mais nas contas públicas.
“Não sabemos quando a atividade voltará ao normal. A atividade econômica já vem de um comportamento defasado no País. Até que essas famílias, agora desempregadas, sejam reabsorvidas, o benefício deveria ser estendido. Até o fim do ano, ajudaria a mitigar a recessão, além de aliviar a situação mantendo um nível mínimo de vida”, afirma.
Segundo a economista, a ampliação do programa teria capacidade de aumentar a receita tributária do governo, já que essa acompanha o nível da atividade econômica, que seria preservada em parte pela manutenção do consumo das famílias.
Em nota técnica publicada pelo Cedeplar, considerando um custo de R$ 94,4 bilhões para o programa, a manutenção do benefício até o fim de 2020 geraria um custo três vezes maior (R$ 283,3 bilhões), mantido constante o número de famílias. O efeito permanente nominal na arrecadação de impostos seria de R$ 22 bilhões nos três meses de auxílio, podendo chegar a R$ 128 bilhões para três trimestres. Enquanto em três meses o benefício geraria um montante de receita de impostos que cobre 24% do custo do programa, a manutenção dos benefícios até o fim de 2020 produziria uma compensação de .
“Estender o período da renda básica geraria um efeito permanente 5,7 vezes maior na arrecadação. Logicamente, esse efeito não é suficiente para acomodar o custo fiscal do programa, mas indica que o custo líquido é menor que o desembolso”, afirma Débora.
Ainda conforme a nota do Cedeplan, se o PIB do trimestre cair 1%, o programa mantido por igual período teria o poder de mitigar 0,45% dessa queda. Levando em conta o prolongamento até o fim do ano, o aumento imediato do PIB chegaria a 0,55%, passando a 0,31% de impacto permanente até 2021.
“O nosso estudo mostra que o impacto da renda não se restringe apenas às famílias que recebem o benefício. Aumentando o consumo das famílias que agora estão sem renda, estimula-se uma série de atividades produtivas e isso espalha pela economia, gerando impactos em setores, gerando impacto em outras classes que não vão receber esse benefício também”, reforça a professora da UFMG.
Entre os mais pobres, a renda cresce 45%, e para aliviar a situação fiscal do governo, a sugestão seria tributar as grandes fortunas e dar andamento a partir de 2021 numa reforma tributária progressiva. O problema é que para colher esses resultados, a União precisaria desembolsar mais recursos agora, num momento de ainda fragilidade fiscal.
A previsão do secretário da Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, é de que o pagamento por três meses some o desembolso de 151,5 bilhões. Para manter, no mínimo, mais R$ 600 pagos em parcelas de R$ 200 por três meses (ler matéria ao lado), o custo seria elevado em cerca de mais R$ 40 bilhões.
“Estamos com mais ou menos 60 milhões de beneficiários. Esse universo está com uma folha de pagamento mensal entre R$ 40 a R$ 45 bilhões. Uma ajuda na magnitude que foi pensada, chegando a até R$ 1,2 mil, gera uma despesa, em termos anuais, da ordem de quase R$ 500 bilhões. É comparável à despesa do regime geral de Previdência. Não existe espaço nas contas públicas hoje para prorrogar esse benefício por muito tempo”, esclarece o especialista em políticas públicas Vinícius Botelho.
Para Botelho, fortalecer o escopo dos programas sociais é uma saída, e não usar o auxílio emergencial que “tem uma finalidade” para renda básica prolongada.
“As projeções econômicas de queda da atividade tiveram dois momentos. Primeiro uma revisão da queda para quase 4%, e agora várias casas e especialistas de mercado estão falando em - 6%. Estamos tendo uma piora na condição econômica rápida, sem muita clareza se no segundo semestre teríamos uma recuperação também rápida ou não. É um risco postergar o auxílio, da forma como está, por muito tempo. Melhor oferecer um apoio mais adequado para a nossa realidade, tivemos déficit primário nos últimos anos e já estamos numa situação fiscal bastante frágil. Agora o que está se discutindo indiretamente é a necessidade de fazer uma escolha: dar uma proteção muito forte que não vai se sustentar ou dar proteção menor mais sustentada ao longo do tempo”, avalia.
Antes mesmo da definição do que fazer com o programa e a vida das pessoas no pós-pandemia, o governo precisa ainda dar conta do pagamento da segunda parcela do auxílio (que começa ainda a permitir saques em espécie a partir do dia 30) e definir cronograma da terceira leva dos pagamentos, além de trazer respostas para pelo menos outros 10 milhões de pedidos que não receberam sequer a primeira parcela.
Sem definição sobre o novo desenho para levar adiante o pagamento do auxílio emergencial, a proposta que desponta, até então, é uma espécie de transição até a ampliação dos programas sociais já existentes, a exemplo do Bolsa Família.
Na briga contra o tempo, o governo pode pagar mais R$ 600 aos beneficiários do auxílio emergencial, porém esse valor seria dividido em três parcelas de R$ 200. Essa proposta elevaria o gasto do governo em mais R$ 40 bilhões.
Em entrevista à rádio Jovem Pan, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse que haverá uma quarta parcela da ajuda e que talvez ocorra até mesmo um quinto pagamento. "Conversei com o Paulo Guedes (ministro da Economia) que vamos ter que dar uma amortecida nisso daí. Vai ter a quarta parcela, mas não de R$ 600. Eu não sei quanto vai ser, R$ 300, R$ 400; e talvez tenha a quinta (parcela). Talvez seja R$ 200 ou R$ 300. Até para ver se a economia pega", disse.
Uma reformulação dos programas sociais pode só sair no ano que vem, fora do orçamento de guerra - aprovado pelo Congresso para ações de enfrentamento à covid-19 este ano. Ainda sob comando de Osmar Terra, o ministério da Cidadania já preparava um pacote de mudanças nos programas sociais do governo, sobretudo o Bolsa Família, que tem sob o guarda-chuva do auxílio emergencial 19,2 milhões de beneficiários. Para essas famílias, só no caso de Pernambuco, a renda média passou de R$ 165,34 para R$ 600, crescimento de 262% no caso daquelas que não recebem a cota dupla de R$ 1,2 mil.
“Uma das lições que ficam da pandemia é que precisamos de instrumentos para agir rápido num choque econômico dessa magnitude. Expandir Cadastro Único, expansão rápida do Bolsa Família aumentaria a rede de proteção social no Brasil. No Bolsa Família, o benefício médio é de R$ 190. Recebem cerca de 14 milhões de famílias, um universo de 45 milhões de pessoas alcançadas. É um benefício que tem potencial muito grande para reduzir a pobreza e extrema pobreza. Vai ter um aumento de pessoa em situação de pobreza e é preciso fornecer apoio para essa população. O fortalecimento dessa rede é bastante importante”, assegura Botelho.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de onde partiu o projeto de R$ 600 emergenciais, já assegurou que parlamentares já estão debruçados sobre a possibilidade de estender o auxílio. “De onde vamos tirar o dinheiro? Esse é o nosso desafio. Já coloquei parlamentares para estudar isso e montar uma proposta para o governo”.