Puxado por desemprego, 'bico' cresce no Brasil e escancara difícil realidade dos informais

Mais da metade dos trabalhadores que fazem 'bico' têm remuneração máxima de apenas um salário mínimo por mês
Marcelo Aprígio
Publicado em 14/11/2021 às 7:00
Dos 10 novos postos de trabalho criados no Brasil, 7 foram de trabalhadores que atuam por conta própria Foto: FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM


Desde que perdeu seu último emprego com carteira assinada no começo da pandemia, em 2020, João Alexandre Silva, 36 anos, formado em administração de empresas, passou a se virar em vários trabalhos como autônomo para recompor a renda. Atualmente, são três: revende cosméticos, faz limpeza de estofados com o cunhado e, quando falta dinheiro para pagar alguma conta, recorre aos aplicativos de transporte, como Uber e 99 — o que tem sido recorrente.

“A gente faz o que pode para não deixar faltar nada em casa. O emprego está difícil, e as coisas estão caras. Se precisar, arrumarei outro bico para complementar a renda”, diz ele, que é um dos trabalhadores que passaram a engrossar o grupo dos que têm mais de uma ocupação no Brasil.

ACERVO PESSOAL - João Alexandre Silva, 36 anos, formado em administração de empresas, passou a se virar em vários trabalhos como autônomo para recompor a renda

Entre o segundo trimestre de 2019 e o segundo deste ano, aumentou em mais de 2 milhões o número de brasileiros sem carteira assinada ou qualquer vínculo formal, com remuneração máxima de um salário mínimo por mês. No segundo trimestre de 2019, esse contingente representava 48,2% dos trabalhadores que atuavam nos trabalhos informais e eventuais, os chamados ‘bicos’. Hoje, já é mais da metade, em torno de 55,6% do grupo.

Para especialistas, esses trabalhadores são um espelho das atuais condições do mercado de trabalho, no qual o desemprego continua alto, e as oportunidades só aparecem na informalidade. Complementar a renda com mais de uma ocupação é uma necessidade para muitas famílias.

“Isso dialoga com a crise econômica, que desestruturou a renda das famílias e aumentou a subutilização da força de trabalho. Muitas pessoas têm de ter mais de um trabalho porque, na informalidade, os salários são mais baixos”, explica o economista, professor da Unit-PE e consultor em produtividade Werson Kaval.

Esta realidade também afeta outros aspectos da economia, visto que a instabilidade financeira que ronda os conta própria é ruim, pois são famílias que deixam de consumir. Como o trabalhador nunca sabe ao certo qual será sua renda naquele mês, não consegue ter um planejamento financeiro adequado. É o que explica o economista Tiago Monteiro, coordenador do Cedepe Business School e consultor econômico-financeiro.

DIVULGAÇÃO/CEDEPE BUSINESS SCHOOL - JOVENS NO MERCADO Tiago Monteiro, economista e diretor do Cedepe Business School

“Sem previsão orçamentária, onde a variação pode ser muito brusca, tanto para cima como para baixo, qualquer dívida de longo prazo é muito complicada e é uma manobra muito imprudente”, frisa Monteiro, explicando que isso impacta diretamente nas decisões de consumo dos trabalhadores, que acabam prejudicadas.

Para tentar ter o mínimo de previsibilidade, o economista Werson Kaval dá dicas para administrar bem as finanças. “A palavra chave é planejamento. É preciso colocar as despesas na ponta do lápis e avaliar o que pode ser cortado”, sugere.

Direitos e ‘bicos’

A falta de amarras da gestão tradicional já foi vista como algo muito positivo nessa nova economia. Mas agora isso está sendo apontado como uma das grandes fragilidades do sistema, pois tem deixado os trabalhadores mais inseguros. “As pessoas romantizam. Você tem um emprego? Tem, mas de baixa qualidade, sem FGTS, INSS nem os demais direitos trabalhistas”, diz Bruna de Sá Araújo, advogada especialista em direito do trabalho e membro do Instituto de Estudos Avançados em Direito (Iead).

“Isso é muito ruim no longo prazo, pois como esse trabalhador vai se aposentar? Como ele fica se acontece um acidente que o impossibilite de trabalhar?”, questiona.

Por causa disso, o advogado trabalhista Bruno Félix, sócio do escritório Galamba Félix Advogados, defende que, mesmo com as dificuldades financeiras, trabalhadores que fazem ‘bicos’ busquem se proteger assegurando direitos mínimos, por meio do pagamento da previdência social.

“Quem trabalha por conta própria deve reservar parte do rendimento mensal para contribuir com o INSS e garantir o direito a benefícios previdenciários, como auxílio-doença, pensão e aposentadorias”, explica.

Ariston Flávio, advogado especialista em direito do trabalho e professor universitário, pontua que o ideal seria contribuir todo mês. No entanto, como o Brasil está enfrentando uma séria crise de desemprego e informalidade, nem sempre é possível manter todas as contribuições mês a mês.

“Desta forma, para não perder o auxílio-doença e não deixar os dependentes sem pensão em caso de falecimento, é possível contribuir de três em três meses, no mínimo”, afirma Ariston.

REPRODUÇÃO/TWITTER @INSPER - Juliana Inhasz, coordenadora da graduação em economia do Insper

Apesar de concordar com as sugestões dos juristas, Juliana Inhasz, coordenadora da graduação em economia do Insper, diz que é papel dos governos proteger esses trabalhadores. “Em mercados que começam a crescer e a gerar distorções nas relações de trabalho, o Estado tem de entrar para garantir melhores condições aos profissionais, longe da exploração, só que sem deixar a flexibilidade se perder”, pontua.

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