Perseguição, confisco de bens e nacionalidade cassada. Essa é a realidade dos nicaraguenses acusados de traição pela ditadura de Daniel Ortega. Até agora, 317 pessoas se tornaram apátridas e denúncias de que seus registros civis estão sendo apagados começam a surgir. "Fomos declarados traidores. Alguns tiveram bens e propriedades confiscados, o que é ilegal. Outros foram apagados do registro civil. É a morte civil, como se a gente nunca tivesse existido", disse o jornalista Héctor Mairena, que vive na Costa Rica.
Segundo ele, muitos perderam dados de nascimento. Os idosos, que recebiam aposentadoria, não recebem mais. Não existe um número exato de quantos perderam seus registros porque muitos continuam ou têm família no país e temem represálias.
Para entender como 317 pessoas se tornaram apátridas em uma semana é preciso voltar alguns meses. Em janeiro, existiam 245 presos políticos na Nicarágua. Após um acordo com o governo americano, 222 foram soltos, tiveram a nacionalidade cassada e foram expulsos para os EUA.
Um dia depois, o bispo Rolando José Álvarez Lagos, símbolo da luta contra a ditadura, foi condenado a 26 anos de prisão por traição à pátria. Ele estava em prisão domiciliar desde agosto de 2022 e foi incluído na lista dos opositores exilados - mas se recusou a embarcar.
Em seguida, Lagos foi transferido para o Sistema Penitenciário Nacional e se tornou o primeiro bispo preso desde que Ortega voltou ao poder, em 2007. "Declara-se a perda dos direitos de cidadão do condenado, que será perpétua", diz a sentença.
"A Assembleia Nacional aprovou uma reforma constitucional que permite a Ortega retirar a nacionalidade das pessoas. Isso é ilegal, pois é produto de uma Assembleia sem legitimidade e porque, para reformar a Constituição, é preciso seguir procedimentos que não foram seguidos, como aprovar a medida em duas votações", explica Mairena.
Seis dias após a prisão do bispo, 94 opositores, entre eles Mairena, foram declarados traidores, perderam a nacionalidade e os direitos políticos para sempre. "Os acusados executaram atos delitivos em prejuízo da paz, da soberania e da autodeterminação do povo nicaraguense", disse o juiz Ernesto Rodríguez Mejía. "Por isso, não podem mais ser considerados cidadãos nicaraguenses."
Internamente, a repressão continua forte. Manuel (nome fictício por razões de segurança) não tem passaporte desde 2021, quando tentou deixar o país para ser vacinado contra a covid nos EUA. "Tentei viajar, mas confiscaram meu passaporte. Quis enviar minha filha de 13 anos para a Flórida, mas também não lhe deram o passaporte. Vivemos, eu e meus filhos, como prisioneiros", diz
O cerco aos religiosos e à imprensa também aumentou. Na semana passada, duas universidades ligadas à Igreja foram fechadas e terão de entregar ao governo todas as informações sobre alunos, professores, planos de estudos, matrículas e habilitações. "Vivemos coisas absurdas. Os jornalistas deixaram de exercer sua profissão. Quem ficou, coloca no ar apenas o que é autorizado pela ditadura", diz Manuel.
Para ele, a libertação dos 222 presos só foi possível após pressão externa, mas a repressão continuará aumentando. "Toda essa perseguição ocorre porque a ditadura tem o controle total do Estado", diz. Atualmente, 27 pessoas são mantidas como presos políticos no país.
Mairena defende que a América Latina se una contra Ortega e pede mais ação do Brasil. "Lamentamos que o governo do presidente Lula não tome uma atitude firme. No Brasil, ocorreram ditaduras. Lula foi vítima. É lamentável que ele não adote uma defesa dos direitos humanos."
Na semana passada, o Brasil se recusou a assinar uma declaração da ONU de 55 países, denunciando Ortega. Após um grupo de especialistas acusar o ditador de cometer crimes contra a humanidade, logo depois, o País ofereceu asilo aos opositores expulsos. "Estamos prontos para explorar formas para que a situação seja tratada de maneira construtiva", disse Tovar da Silva Nunes, embaixador do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Medo faz líderes religiosos da Nicarágua fugirem para o exílio
Durante duas horas, todas as tardes, o padre católico ouve confissões atrás de uma parede de vidro onde qualquer pessoa pode localizá-lo. Mas essa visibilidade é enganosa. Ele deseja manter seu nome e paradeiro em segredo. Ele começou a ouvir confissões poucos dias depois de fugir da Nicarágua, onde o governo prendeu líderes religiosos, ativistas e vários críticos do ditador Daniel Ortega.
O padre vive no exílio na Costa Rica e concordou em falar com a condição de que seu nome e localização fossem omitidos. Ele teme por seus parentes e amigos, que ainda vivem na Nicarágua, e espera que estejam seguros enquanto ele permanecer discreto.
Ele não está sozinho. Muitos padres e freiras no exílio se preocupam com represálias de Ortega e temem tornar suas histórias públicas. "Há perseguição à Igreja, porque ela é a voz do povo", disse o padre.
A ONG Nicaragua Nunca Más estima que mais de 50 líderes religiosos fugiram desde 2018, quando o país foi varrido por protestos em massa. No ano passado, duas congregações de freiras foram expulsas da Nicarágua.
Outros membros da Igreja, incluindo padres, seminaristas e funcionários leigos, estavam entre os 222 nicaraguenses libertados e expulsos à força para os EUA em 9 de fevereiro.
O padre entrevistado na Costa Rica deixou sua cidade na Nicarágua com tanta pressa que não houve tempo para despedidas. Na companhia de um motorista, ele viajou de carro, depois de moto. Uma vez perto da fronteira com a Costa Rica, caminhou. "Sinto falta do meu povo", disse, com a voz embargada.
EVANGÉLICOS. Ortega inicialmente pediu à Igreja Católica que desempenhasse um papel de mediador, mas a primeira rodada de diálogo não durou muito. Depois que os padres abrigaram os manifestantes em suas paróquias e expressaram preocupação com o uso excessivo da força, Ortega os chamou de "terroristas".
A organização Nicaragua Nunca Más e a CSW, com sede no Reino Unido, dizem que o governo de Ortega também tem como alvo pastores evangélicos. Yader Valdivia, da Nicaragua Nunca Más, disse que pelo menos 50 igrejas evangélicas já foram fechadas.
"Quando a Igreja tentava ser uma voz para os que não tinham voz, o regime ditatorial de Ortega foi atrás da Igreja", disse o arcebispo de Miami, Thomas Wenski, que se reuniu com alguns dos clérigos e seminaristas exilados nos EUA.