Quando um país passa por um processo de redemocratização, uma das primeiras medidas a ser tomada é a desmilitarização do seu aparato de segurança. O objetivo é tornar nítida a separação das funções militares e civis: a polícia é responsável pela ordem interna, enquanto os militares encarregam-se dos problemas externos.
Segundo o Jorge Zaverucha, um os maiores estudiosos das relações civil-militares, militarização é o processo de adoção e uso de modelos militares, conceitos e doutrinas, procedimentos e pessoal, em atividades de natureza civil. A militarização é crescente quando os valores do Exército se aproximam dos valores da sociedade. Quanto maior o grau de militarização, mais tais valores se superpõem.
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Há na semidemocracia brasileira, um processo incompleto de consolidação do regime que está pendente desde a transição da Ditadura Militar para o regime democrático de direito. Dentre outros requisitos, não houve a diminuição das prerrogativas dos militares em assuntos internos de forma substancial. Ou seja, a desmilitarização política não ocorreu e entulhos autoritários permaneceram, até mesmo na dita “Constituição Cidadã”.
Semidemocracia é o conceito de regime político no qual houve transição para uma democracia representativa eleitoral – democracia política -, mas com imperfeições em alguns critérios mínimos para a sua consolidação, como as garantias aos direitos civis e políticos e o controle efetivo dos civis eleitos sobre as suas forças armadas.
No processo transitório é fundamental que as elites políticas se acomodem as novas regras do jogo (democrático). No Brasil, na transição, houve uma “tutela amistosa” entre as elites civis e militares que acordaram em torno das regras eleitorais, mas que não avançaram, nem ao menos tentaram, quando o assunto foi o controle das forças armadas. Mesmo depois da criação do Ministério da Defesa no governo de Fernando Henrique Cardoso, as forças armadas mantiveram intactas as suas prerrogativas políticas. E o artigo 142 é a maior marca dessas prerrogativas.
Como garantes da lei e ordem – aberto a muitas interpretações – as forças armadas aparecem como os grandes agentes da política nacional. Não é à toa que o Presidente Bolsonaro diz que está agindo “dentro das quatro linhas da Constituição”. Como garantes da lei e da ordem, as forças armadas têm carta branca para atuar, principalmente quando há respaldo social.
No processo de feitura da nova constituição, na Assembleia Nacional Constituinte em 1987, as forças armadas montaram um lobby de deputados pró-militares que serviram de veto players nos assuntos de segurança interna e forças armadas. Praticamente, ficaram inalteradas as questões ligadas a segurança pública e ao papel das forças armadas como garantes da lei e da ordem. Ou seja, os artigos constitucionais de hoje são os mesmos da época da ditadura militar.
Está assim o artigo 142: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Ou seja, se o Presidente da República entender que a pátria e os poderes constitucionais estão ameaçados, pode convocar as forças armadas para recompor a lei e a ordem. Inclusive a ordem constitucional.
Quando avaliamos o nível de confiança – o capital social que é o lubrificante da sociedade – nas instituições, as forças armadas e a Igreja são as instituições pelas quais os brasileiros mais demonstram respeito.
O eleitor médio, em qualquer parte do mundo ocidental, é moderado e conservador. Quando escolhe seus representantes nos pleitos eleitorais, raciocinam em termos de custo-benefício. Ou seja, vai escolher aqueles que melhor podem satisfazer os seus interesses particulares, sobretudo os de caráter econômico.
Então, pouco importa para o eleitor médio se há uma junta militar governando ou um civil eleito pelo voto direto, o que ele quer é resolver os seus problemas econômicos.
A democracia é um regime de eterno conflito, pois é difícil manter a governabilidade pelo excesso de interesses que estão em conflito. Portanto, tomar decisões em regimes desse tipo é muito mais complexo do que em regimes autoritários. O que gera insatisfação de parte considerável do eleitorado, principalmente em contextos de alta corrupção e impunidade.
Hoje, no Brasil, as piores instituições em termos de confiança do eleitorado são os partidos políticos e o Congresso Nacional. Dados do Latinobarómetro reforçam este argumento. Enquanto, como dito acima, as forças armadas estão entre as instituições de maior respeitabilidade para o eleitor médio.
A corrupção demonstrada pela Operação Lava-jato, que apontou os vários atos de crime praticados pelo Partido dos Trabalhadores e seus comparsas e a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) relaxando as prisões efetuadas, principalmente a prisão do chefe do PT, Lula da Silva, levou para o campo da insatisfação do eleitor médio a atuação dos membros daquela corte.
Somado a isto veio a série de prisões efetuadas em cima de apoiadores do Presidente Bolsonaro, a mando do ministro do STF, Alexandre de Moraes (para quem ninguém pode criticá-lo, pois há risco de ser incluído no famigerado inquérito das “fake News”), além da desmonetização das páginas na internet e em canais de transmissão, como o Youtube, pertencentes a indivíduos (alguns deles jornalistas profissionais) que foram acusados de “fake News” – diga-se de passagem, nem crime é, pois não foi positivado em lei e ninguém conseguiu definir ao certo o que realmente este “tipo penal” seja – levando a sérios comprometimentos dos direitos civis e políticos desses indivíduos.
O STF se tornou a instituição mais odiada por parte considerável desse eleitorado mediano que, na verdade, decide eleições. Os atos inconstitucionais patrocinados por membros daquela corte colocaram em evidência o artigo 142 supracitado. Apesar de um entulho autoritário, está escrito na Constituição e pode ser acionado pelo Presidente da República, tudo “dentro das quatro linhas da Constituição”.
O Presidente abriu o espaço para essa intervenção, na prática, quando entrou com um processo de impeachment contra o ministro do STF Alexandre de Moraes e que foi indeferido pelo Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco – destacar que Pacheco é advogado e tem processos administrados por ele, portanto, de seu interesse particular, transitando dentro do STF, o que configura conflito de interesses.
O jogo está duro e os atores políticos estão num nível de conflito muito alto. Por incrível que pareça, apenas Bolsonaro está “dentro das quatro linhas da Constituição”, mas isso não quer dizer que seja democrático, pois a Constituição de 1988 manteve esse entulho autoritário no seu artigo 142.
Então, temos uma suprema corte que fere a Constituição em seu componente liberal clássico – os direitos civis e políticos de indivíduos que criticam membros daquela corte – abrindo inquérito, investigando, julgando e legislando, um verdadeiro legibus solutus. De outro lado, temos o chefe do Poder Executivo ameaçando usar o artigo constitucional de garantia da lei e da ordem. No meio, o Poder Legislativo configurado por uma elite predatória – a exemplo dos principais atores da Comissão Parlamentar de Inquérito do COVID-19, Renan Calheiros e Omar Aziz – que faz vistas grossas a atuação déspota do STF e joga a culpa do autoritarismo no Presidente da República.
No Brasil de hoje, há um risco real de retrocesso autoritário, tudo “dentro das quatro linhas da Constituição”, não pela “crise” da democracia, mas pela não consolidação de um regime político de democracia liberal na qual as elites políticas convirjam em torno das regras do jogo democrático, da Poliarquia e do controle efetivo das forças armadas.
O remédio aos abusos do Poder Judiciário não é republicano, mas é constitucional. Podemos ter um desfecho autoritário caso as elites políticas, de direita, de esquerda, de centro e demais agentes sociais relevantes não consigam levar o Poder para o centro do jogo democrático.
José Maria Nóbrega Jr é doutor em Ciência Política pela UFPE. Professor Associado da UFCG da área de Ciência Política. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFCG. Professor de Gestão Pública do CDSA/UFCG/Sumé-PB. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Estado de Direito e Democracia - EDem. Analista político. Consultor político.
*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC