Em seu Manifesto de fundação de 1980, o PT afirma o "seu compromisso com a democracia plena e exercida diretamente pelas massas". E completa, na Carta de Princípios: "pois não há socialismo sem democracia nem democracia sem socialismo". Como então entender a nota de apoio à vitória de Daniel Ortega na Nicarágua, ocorrida esta semana? Ortega foi líder da Revolução Sandinista, em nome da qual governou o pais de 1979 a 1990. Retornou ao poder em 2007 pela via eleitoral e, em eleições sucessivas, está no poder há 14 anos, tendo recentemente sido reeleito para o seu quinto mandato consecutivo, com mais de 70% dos votos. Durante a campanha, mandou prender sete dos candidatos de oposição e não aceitou observadores internacionais do pleito. Em 2018, num protesto contra a reforma da previdência, reprimiu com violência a oposição, o que levou a morte mais de 300 pessoas, sem que ninguém até agora tenha sido punido. Em vista disso, a União Europeia considerou as eleições fraudadas. A Nicarágua é um dos países mais pobres da América Central, o 2º, numa região marcada pela pobreza secular. Com um IDH de 0.660, 128 colocado no ranking global, teve uma contração no seu PIB, de 8.8%, entre 2017 e 2020, hoje totalizando 12.6 bilhões de dólares. No século 19 e durante décadas do século seguinte, foi um quintal da política externa americana, que depunha governos que lhe desagradassem, chegando a ter o controle do tesouro nicaraguense por décadas. Nosso fluxo comercial com o pais foi de U$S 73 milhões de dólares em 2020, menos que o comercio exterior do estado do Ceará. Sem meias palavras, a Nicarágua é um pais pobre com elevado nível de desemprego, agrícola, comandado por um ditador que, como outros mais, a exemplo da Hungria, Polônia, Turquia etc, faz uso das regras e franquias democráticas para destruir a democracia - e conta, entre nós, com o apoio do PT. Por que o partido o faz? Por três razões, creio. A 1a delas é manter a sua coesão, a liga interna, entre a federação de correntes, em especial as mais à esquerda. Em segundo, para manter-se na liderança política da esquerda na américa do sul e central. E, por último, por crer que o apoio a ditadura nicaraguense não lhe trará custos altos em termos políticos e eleitorais. Esquece-se o partido que essa opção o desmoraliza na defesa da manutenção da democracia em nosso pais, que está sob ataque; cria uma dualidade entre o discurso e prática partidária e reforça o estigma do seu desapego real a democracia - a nossa e as demais. E dá folego, queira ou não, aos fascismos, às ditaduras e populismos autoritários que denuncia.
Raul Jungmann, Ex-Ministro da Reforma Agrária, Defesa e Segurança Pública.
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