O Enem é uma política pública de Estado ou de um governo? E que diferença a resposta a essa pergunta faz para os cidadãos brasileiros? Não deveria haver dúvidas de que um processo seletivo em escala nacional, hoje a principal forma de acesso ao ensino superior público no Brasil, é uma das principais políticas educacionais do país e que, portanto, deveria ser conduzida com isenção, embasamento técnico e responsabilidade.
Desde a sua eleição, o presidente Bolsonaro escolheu o Enem como uma das suas frentes de batalha, em sua jornada contra os "inimigos ideológicos". Argumentava que a prova até então era elaborada sob influência de ideias "esquerdistas" e contrárias aos valores da família. Prometeu que em seu governo isso não mais aconteceria, pois seria composta uma comissão para evitar que questões envolvendo, por exemplo, a temática de gênero integrassem a prova. Parecia improvável que esse tipo de interferência fosse se concretizar, pois, desde a sua criação, o exame era reconhecido como um dos melhores processos executados no âmbito da educação brasileira.
Em edições anteriores, ocorreram problemas relacionados à aplicação da prova, como em 2009, quando denúncias de vazamento levaram ao cancelamento do exame, que foi refeito e realizado dois meses depois. O episódio levou o então presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), Reynaldo Fernandes, a deixar o cargo. Houve problemas pontuais ao longo dos anos seguintes, mas as gestões que se sucederam no Ministério da Educação promoveram melhorias logísticas, com a adoção de protocolos de segurança que envolvem desde a formulação das questões até o processo após a aplicação.
Em 2021, o Enem enfrenta o maior problema da sua história: servidores do Inep alegaram interferências indevidas do governo para entregarem seus cargos a poucos dias da prova. Em seguida, o presidente Bolsonaro afirmou publicamente que "o Enem começa a ter a cara do governo". Chamado para prestar esclarecimentos na Câmara dos Deputados, o ministro da educação Milton Ribeiro confirmou a fala do presidente. Mais uma vez, em um país confuso sobre os valores políticos e os papeis das instituições e dos governantes, as afirmações podem soar como apenas mais uma polêmica. Mas não são. Há vários indícios de que critérios técnicos e de segurança foram violados, sem maiores pudores. Em nome de quê? De dotar o processo de maior lisura? Antes fosse.
Em um país em que as instituições não são confiáveis aos olhos dos cidadãos, utilizar uma política pública para chancelar um discurso de um governo é sempre um escândalo. Perdemos todos, uma vez que políticas públicas devem sempre obedecer a critérios técnicos e éticos. A inviolabilidade e a transparência são marcos que nunca deveriam ser ultrapassados.
Priscila Lapa, cientista política
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