Nunca foi fácil. Antes, as poucas faculdades eram públicas, mas o acesso nem tanto. Hoje, quem pode, frequenta faculdades particulares, seis anos de curso, arredondando os custos, 10.000.00 reais por mês, algo em torno de 720.000,00 por diploma. Segue-se a residência médica, mais 2 ou 3 anos e, muitas vezes, outros tantos em outra especialização.
Ao entrar no mercado, encara as demandas de atender bem, comprar uma casa para morar, um carro, um consultório e pode ser que haja um casamento na espera, se já não estiver com dois ou três filhos precisando estudar.
É normal que exista a ambição de ser bem remunerado e para isso vai à luta. Faz concursos, aceita dois plantões, faz hora extra, ocupa finais de semana e feriados. Se houver pandemia, estará na linha de frente enfrentando até o desconhecido. Continua estudando, sempre.
Existe um investimento e no sistema capitalista sacerdócio tem limites. É justo que ao chegar em casa possa pagar as contas, estudar em paz e, como todo trabalhador, descansar. É merecido que possa gozar dias de férias com a família, que possa conhecer outras paisagens, aproveitando um ou outro congresso que deve frequentar.
No serviço público, estará em contato direto com a pobreza extrema, a miséria que consome a saúde, as injustiças que contaminam tanta gente boa, honesta e trabalhadora. É compreensível que a classe médica seja particularmente intolerante com a corrupção, como expressa indignada todo santo dia nas redes sociais. É o mínimo que se espera de quem convive de perto com as consequências dela. Dinheiro que deveria garantir remédios para quem precisa é desviado para bolsos cheios, verbas que deveriam fortalecer o SUS, recheando as cuecas e as contas laranjas das negociatas.
Ao entrar no mercado de trabalho, não é raro que o médico enfrente pressões para que a produção esteja acima de tudo, como se a melhor maneira de tratar do paciente não fosse fazê-lo da forma tecnicamente correta que aprendeu, com autonomia para analisar as particularidades de casos que seriam melhor conduzidos fora de protocolos imutáveis. A economia pode auxiliar no controle de qualidade, mas se aplicada dissociada das necessidades do paciente, o prejudica de imediato e, amanhã ou depois, com o agravamento da doença aumentando os custos, traz também prejuízos para o prestador de serviço ou para o plano de saúde.
O sistema pode querer envolver o médico nos negócios, fazer propostas, quem sabe, para parcerias na prescrição, na realização de procedimentos, no uso de material, nos exames, tudo disfarçado de estímulo ao trabalho, esquecendo que médicos não são anjos capazes de sempre resistir aos impulsos e tentações, podendo escorregar em algum momento, se voltando primeiro para o seu interesse e passando por cima do que seria melhor e necessário para os pacientes. Transformar o médico em sócio da farmácia, do laboratório, do fornecedor de material e quem sabe, até da funerária, seria uma prática perigosa, capaz de comprometer seu patrimônio mais precioso: a confiança dos clientes e da comunidade.
Não é mesmo fácil ser médico. Manter a coerência do grito contra a corrupção e lutar por honorário justo, fruto exclusivo do seu trabalho.
Em suas mãos, a minha vida, doutor, diz o paciente. Sei que penou muito para assumir tão importante papel na sociedade. Não basta condenar o "toma lá dá cá" e o "por fora" da política.
Não basta.
Sérgio Gondim, médico