O instituto do "juiz das garantias" surgiu como alteração do Código de Processo Penal (através dos artigos 3º-B a 3º-F) no bojo da "Operação Lava Jato" e do chamado "Pacote Anticrime" (Lei 13.964/2019). Em linhas gerais, o julgador que participasse da fase investigativa, conhecendo de medidas cautelares daí resultantes (prisões cautelares, buscas e apreensões e quebras de sigilo telefônico), não funcionaria na fase judicial, inaugurada pelo recebimento da denúncia.
Assegurando-se, com isso, a imparcialidade no ato de sentenciamento, afastar-se-ia a contaminação do julgador pelo quanto apurado no inquérito, cingindo-se seu trabalho à análise probatória prospectada sob o signo do contraditório. Haveria, pois, efetivamente, um processo penal democrático.
A maioria dos países afeiçoados exatamente à democracia já abraçou o instituto com distintas denominações. Refiro-me ao "Juiz Instrutor" na França, ao "Juiz de Instrução" em Portugal e ao "Juiz da Investigação" na Alemanha, por exemplo. Quanto à América Latina, só o Brasil ainda concentra, na mesma pessoa, as funções instrutória e jurisdicional. Tirando o Brasil, resta Cuba, não exatamente um modelo nesse campo. Será possível que apenas nós e os cubanos estejamos certos?
A discussão primordial é singela: o juiz que atuou na fase inquisitorial teria imparcialidade para julgar o réu? Daí, outra indagação: por que não atribuir a um juiz (das garantias) a prática dos atos anteriores à denúncia e a outro o julgamento do processo? Respondendo negativamente à primeira pergunta e afirmativamente à segunda, cito Luiz Mário Guerra, em artigo para o Consultor Jurídico de 17/06/2023, com quem concordo: "No mais das vezes, o magistrado cuidará de confirmar suas primeiras impressões, legitimando, por meio da sentença condenatória, a sua atuação na fase pré-processual".
Hoje, defunta a Operação "Lava Jato" após tantos atritos com o Estado de Direito (ajustes entre acusação e juiz para condenação de desafetos; fabricação e vazamento de notícias para influir nas paixões da sociedade etc), ainda mais longe se projeta o juiz das garantias, suspenso, porém, por liminar de janeiro de 2020 do Ministro Luiz Fux, do STF, que, para tanto, argumentou escassez de debates, risco de caos na Justiça Criminal e desprezo à premissa da carência de magistrados no País e às diferenças regionais.
O juiz das garantias, porém, não é nenhuma excrescência à moda do engenhoso Cavalo de Tróia, mas sim a perfectibilização da urgentíssima modernização de regras que remontam a um Processo Penal de inspiração autoritária (para alguns fascista porque leva a Vincenzo Manzini, advogado de Mussolini e autor do "Códice Rocco" de 1930), que não somente desafia, como dinamita as bases da Constituição de 1988 nesse quadrante das cláusulas pétreas.
Matéria processual penal, não de reserva de iniciativa do Judiciário, se volta a assegurar direitos reputados fundamentais no olhar soberano do constituinte originário. Nada a ver com a autonomia dos Tribunais.
Aliás, a grande demonstração da importância do instituto é fruto de uma ironia do destino. Afinal de contas, o proponente do Pacote Anticrime foi o então Ministro da Justiça que, antes, era o Juiz Federal à frente da "Operação Lava Jato", sendo hoje Senador. A suspeição de Sua Excelência foi afirmada pelo STF exatamente por sua atuação na Lava Jato (HC nº 164.493).
Em conclusão, citando André Damiani e Vinicius Fochi, em artigo para o Consultor Jurídico de 6/12/2022, quando dizem que "a cada dia que passa sem a introdução do juiz das garantias, é um dia a mais que permanecemos suscetíveis aos abusos do Estado", e que, por conseguinte, "chegou a hora e a vez do juiz das garantias, um importante instituto contra os abusos do poder punitivo do Estado, que reforça o caráter acusatório do sistema processo penal brasileiro, bem como acrescenta qualidade à prestação jurisdicional e aproxima o Brasil das grandes democracias ocidentais", faço desse o sincero sentimento que igualmente carrego e que, espero e torço, haverá de sensibilizar o Supremo ao enfrentar a constitucionalidade da matéria nas ADI's 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Tomara.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado