Como se estivesse perscrutando o relógio, numa cenografia da espera, os ponteiros marcaram, enfim, 9 horas. É então que meu telefone toca. Antes das 9, apenas os amigos muito íntimos e situações peculiares justificam o uso desse aparelho em Portugal.
Levantei o auscultador e escutei uma voz bem articulada, com timbre distinto e sotaque luso: "Estou sim! É a professora X? " Respondo afirmativamente. "Estou ligando a pedido do professor brasileiro Y". Encontrei-o num Congresso em Munique. Titubeio. "Pelo vosso silêncio, estou a perceber que não está a saber de quem se trata. De todo modo, vou deixar consigo a mensagem que ele vos enviou: Y chegará amanhã e ficará dois dias em Portugal.". Logo me indago: quem é esse homem que fragmenta as minhas reflexões assanhando o meu acordar? Quem é aquele outro estranho, brasileiro, que decreta que me busquem de forma discricionária? Num pano rápido, encerrei a conversa:: eu estaria no aeroporto na hora marcada. Ele rebate: "Irei ao vosso encontro com a minha esposa". Por curiosidade, indaguei: de que maneira eu seria reconhecida pelo casal? Deduzi o sorriso dissimulado. Recordei a história de "O anjo do estranho" de Edgar Allan Poe, embora não existisse qualquer perplexidade ou hesitação em mim.
Na hora informada, caminhei serena até o portão de desembarque dos passageiros. Em minha frente, com olhares muito fixos, estava um casal muito elegante. "É a professora X? " Fascinada, tentei imitar o sorriso da Monalisa. Logo percebi que era o protagonista do telefonema - um médico português. Logo descobrimos que ele havia trocado o nome do meu amigo - professor da UFPE. Pior ainda, meu amigo, identificado naquele momento, havia decidido antecipar a viagem para o Brasil. Era sábado e o casal de portugueses indagou se a página da minha agenda estava com lacunas. Já não recordo a resposta. Sei que aquiesci ao convite para uma tourada fora de Lisboa. Outros amigos do casal - também portugueses - haviam chegado de Munique e se juntaram à comitiva. Seguimos em três carros. Depois do espetáculo de touros, o almoço num restaurante típico com abundância de pratos, vinho e música típica. A partir desse dia, passei a frequentar, aos sábados, a quinta de propriedade do casal em Fernão Ferro. No grande espaço arborizado misturavam-se mais de quarenta convidados. Sentavam-se em mesas acopladas, forradas com toalha xadrez na cor encarnada, formando um grande corredor coberto com lona verde. Sardinhas rechonchudas e com sabor intenso eram retiradas da grelha e servidas com salada de "pimentos" vermelhos, amarelos e verdes, picles e batatas ao murro. Um exército de mulheres com trajes iguais servia os comensais. Gulosamente, fixávamos dois dedos (indicador e polegar) nas extremidades da sardinha e levávamos a iguaria à boca. Um grupo servia e o outro retirava, com aparelhos próprios, a espinha do peixe. Tal requinte evitava que contássemos a quantidade já consumida. E tudo fazia recordar o filme de Buñuel "o discreto charme da burguesia".
Conheci, a partir daquele dia, a elite de Lisboa: nobres, intelectuais, embaixadores... A revista "Ola" sempre disponibilizava duas ou três páginas para as fotos e comentários desses encontros. Certa vez escutei do anfitrião uma observação intrusa: Eu tenho sempre o cuidado de pedir aos jornalistas que não publiquem as suas fotos. Indaguei a razão e percebi a estatura do preconceito: Você é casada e não está acompanhada do seu marido. Afinal, haviam criado uma blindagem que atendia aos meus propósitos: não gostar de aparecer, embora fosse avessa ao politicamente correto.
Graças a esses encontros, fiz grande amizade com a embaixatriz russa (na realidade, uma ucraniana) e o marido. Num voo fretado pelo casal, conduzindo a fina flor de Portugal, conheci a Rússia que os turistas ignoram. Dessa viagem restam, além das lembranças, um quadro a óleo de uma pintora famosa, um tapete gasto e algumas fotos. Guardo também os retratos da coleção de carros antigos - hobby do casal amigo.
Numa noite qualquer, após uma recepção, meu amável anfitrião repetiu Drummond: "Tudo é mais simples diante de um copo d'água". Todavia, quando o copo chegou ao quarto ele havia feito a sua derradeira viagem. Afirmava Roland Barthes numa transcrição nos "Fragmentos...", que "a morte é isso mesmo: tudo que foi visto, terá sido visto para nada"... Discordo da frase. Afinal, os únicos bens duradouros em nossa vida são as lembranças. E elas acabam sendo legadas aos amigos que ainda permanecem. Também passei a acreditar na energia do destino. Tudo teria seguido aquele itinerário se o meu telefone não houvesse tocado?
Dayse de Vasconcelos Mayer , constitucionalista e cientista política