Trata-se de um dos mais expressivos gestos da espécie humana. Envolve enorme carga de afetos simbólicos e reais assim como revela múltiplos sentimentos desde suave demonstração de carinho à arrebatada manifestação de paixão carnal.
Na cultura ocidental predomina a estética do respeitoso beijo no rosto à erotização do beijo na boca ou a criativa simplificação do “selinho”, um toque labial, cujo sentido real somente a ocasião e o desdobramento da eventual relação podem desvendar.
Como fonte de inspiração, o beijo é objeto de consagradas obras de arte, a exemplo da escultura de Rodin (1840-1917) que remete ao final trágico: Francesca da Rimini (Círculo 2, Canto 50, Inferno de Dante), seu cunhado e amante Paolo, apaixonados e influenciados pela história de amor de Lancelot e Guinevere, são assassinados pelo marido Giovanni Malatesta. Detalhe: embora abraçados, os lábios dos amantes não se tocam o que sugere, interrompidos pela morte, jamais se beijaram.
Retratando, também, o beijo, é escandalosamente belo o quadro do pintor simbolista austríaco, Gustav Klimt (1862-1918). Nele, o gesto de beijar sugere uma fusão de corpos e permite identificar uma mensagem ambígua: a cumplicidade de um casal apaixonado ou a agressiva dominação masculina sobre a mulher.
No teatro e no cinema, “O beijo no asfalto” (1960) foi o tema de consagrada peça de Nelson Rodrigues e de dois excelentes filmes (1981 e 2017). Com a percepção genial para as misérias da “vida como ela é”, o autor transforma a cena de um atropelamento numa trama trágica: a vítima moribunda pede e recebe o beijo de um desconhecido – o personagem Arandir – que, por conta de uma manchete sensacionalista, passa ser acusado de assassino e homossexual. No entanto, seu maior acusador, o sogro Aprigio, ao final, se revela o verdadeiro homossexual e assassina o genro inocente por quem era apaixonado.
Narrada pelos evangelistas Mateus, Marcos e Lucas, a identificação de Jesus no Getsêmani, após a última ceia, pela força policial do Sinédrio, decorreu do beijo dado por Judas. A expressão “beijo de Judas” passou a significar um ato, um gesto aparente de amizade que esconde o terrível pecado da traição.
A vasta tipologia de “beijos” foi, recentemente, acrescida por uma novidade: “o beijo padrão FIFA”, a poderosa entidade que manda e desmanda no futebol mundial. Na cerimônia de premiação das jogadoras da seleção espanhola, campeãs da nona edição da Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino, Luis Rubiales, Presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, em atitude imprópria, desrespeitosa e condenável beija a boca da atleta Jennifer Hermoso.
Não faltarão misóginos, enrustidos ou assumidos, que considerem as reações indignadas como “chiliques feministas”. Certamente, joga nesse time o Sr. Rubiales, que não enxerga ou não quer enxergar as conquistas das mulheres no enfrentamento da mais antiga e cruel dominação. A Hermoso jogou e venceu a Copa Feminina de Futebol (jogo de macho): é símbolo, ao lado de todas a jogadoras, exemplo de bravura na superação das desigualdades de uma luta que não terminou.
Para compensar, existe o beijo romântico que perdoa o “pecado quase crime de um beijo sem permissão”, licença poética na voz inesquecível de Nelson Gonçalves, em Argumento (Paulo Cesar Batista) e que condena a lua “que abandonou a rua e fugiu com o luar”.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco