Precisamos refletir sobre o fato de que, mesmo após mais de um século desde a suposta abolição, pessoas negras no Brasil ainda vivenciam diariamente o temor de atos que atentam contra sua dignidade, honra e até mesmo suas vidas. Quando será o dia em que alcançaremos uma verdadeira democracia racial? Desde maio de 1888 até os dias de hoje, negras e negros do nosso país permanecem expostos a uma série de riscos que jamais seriam extinguidos por meio da assinatura de uma princesa branca, que, com a tinta de sua caneta, não teria a capacidade de apagar séculos de injustiças, desigualdades e crimes cometidos contra brasileiras e brasileiros.
Imaginemos por um momento uma mulher negra, surda e analfabeta, que passou a maior parte de sua vida presa em um ciclo brutal de servidão, reminiscente da escravidão, a serviço de uma família privilegiada. Esta mulher, cuja jornada de trabalho doméstico era esmagadoramente exaustiva, nunca teve a oportunidade de tirar sequer uma carteira de trabalho ou experimentar a liberdade de sair de casa sem permissão. Pois essa realidade desumana foi vivenciada, de fato, dos 9 até os 50 anos de idade, por uma mulher negra mantida nessa situação pela família de um desembargador do TJ-SC, no Sul do país. Após denúncia, a vítima foi resgatada e encontrou abrigo em um local onde finalmente começou a receber apoio: ajuda psicológica para as profundas cicatrizes emocionais, educação escolar para conquistar a dignidade do conhecimento, acompanhamento médico e psicossocial para tratar as consequências físicas e emocionais do abuso e, acima de tudo, o acesso a direitos básicos que lhe foram negados ao longo de sua vida.
A história toma um rumo ainda mais sombrio quando o desembargador acusado, representando o sistema de privilégio que permeia nossa sociedade, ousou fazer um pedido absurdo ao requerer o direito de saber onde essa mulher estava. Como se ela fosse sua propriedade, pediu permissão para visitá-la e o direito de levá-la de volta para a casa da opressão, sob a justificativa de que ela poderia desejar isso. O STJ, ao invés de proteger a vítima, deferiu o pedido. O caso chegou ao STF por meio da Defensoria Pública da União, mas mesmo ali, na mais alta corte do país, o erro não foi corrigido.
A decisão foi tomada por um ministro que, dada a sua posição de privilégio como homem branco, não teve a sensibilidade de compreender a profunda injustiça e o trauma que essa mulher enfrentou ao longo de sua vida. A influência de crenças religiosas pessoais em sua decisão é uma triste lembrança de que nossa justiça deve ser verdadeiramente imparcial e equitativa.
Para se ter uma sociedade antirracista, como Angela Davis defendeu, é necessário que o combate ao racismo seja um pacto coletivo, que as instituições façam sua parte. Um STF masculino, branco, que permite a interferência do viés religioso de seus ministros, e de pessoas que vem de uma lógica de privilégios, jamais conseguirá desconstruir sua hermenêutica discriminatória. O racismo institucional é impiedoso. Por isso estudos acadêmicos e movimentos sociais versam sobre a importância da inserção de mulheres negras em espaços de poder para que, de fato, a lógica da nossa sociedade seja alterada. As mulheres negras estão na base da pirâmide social. Quando essa base se movimenta, mexe com toda a estrutura da sociedade.
A má notícia para estes algozes é que podem tentar invisibilizar, subestimar, condenar, questionar e até mesmo tentar aniquilar a existência de mulheres negras: todas permanecerão de pé e sustentando umas as outras. Ninguém para o movimento! As mulheres negras de todo o Brasil estão ocupando e vão ampliar suas presenças nos espaços de poder. É importante manter a mobilização no sentido de conscientizar o Presidente da República e lembrá-lo da obrigação moral da nomeação de uma mulher negra para o STF. Ou é isso, ou resta comprovado que seu compromisso com a equidade racial perpassa por um reprovável jogo de circunstâncias políticas.
Manoela Alves, diretora do Instituto Enegrecer e secretária geral adjunta da OAB-PE