OPINIÃO

A crise da democracia e a síndrome de avestruz

"A história nos desafia a grandes serviços. Nos consagrará se os realizarmos e nos repudiará se deles desertarmos"

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Gustavo Henrique de Brito Alves Freire

Publicado em 04/10/2023 às 0:00 | Atualizado em 04/10/2023 às 14:16
No dia 8 de janeiro, milhares de apoiadores de Bolsonaro vandalizaram prédios dos Três Poderes, em Brasília - Divulgação

Grécia, século V antes de Cristo, mais especificamente ano 590. O homem justapõe os termos "demos", povo, e "kratía", poder, significando "governo do povo", para conceber a noção de "democracia", regime político que refuta o autoritarismo e as leis de opressão, apoiando-se na premissa de que as decisões devam ser tomadas em assembleias (eclésias), mediante a participação popular direta.

Coube aos romanos, não aos gregos, a designação da democracia como sinônimo de coisa pública, patrimônio imaterial do conjunto dos munícipes ("populus romanus"), visando o bem geral. Quando se imprime um looping temporal para se chegar em foco à era moderna, visualiza-se o debate acerca da constitucionalização das democracias, a partir da efetividade das Cartas Magnas objetivamente construídas de modo participativo.

Não pairam dúvidas de que a democracia no mundo está em crise (ou, como alguns preferem, na "era da desilusão"). Quem o confirma são dados da ONU ("Democracy Index") quando apontam que o número de "democracias plenas" no mundo diminuiu nos anos 2000, sendo que, delas, a principal, a norte-americana, foi rebaixada para "democracia defeituosa" depois dos acontecimentos de 2016. A brasileira também. Na catarse que isso como regra provoca, a pretexto do exercício das liberdades que somente a democracia proporciona, e não as ditaduras, pessoas, inclusive, instruídas, questionam o sentido do ideário democrático ao mesmo tempo em que refutam evidências da crise.

Não há uma só causa por trás desse fenômeno. São diversas. O certo é que o sentimento dos que colocam em dúvida a democracia, e, mesmo, flertam com sua antítese, deriva, precisamente, das dificuldades que a fórmula democrática vem enfrentando para dar respostas aos problemas do cotidiano. O "vazio real" da democracia é uma constatação objetiva e não uma ficção.

No Brasil da atualidade, parece lógico até a uma criança que não é normal o que se assistiu no 8 de janeiro desse ano na capital da República. Destruir, atacar, agredir o que é de todos! Como assim?! A derrota eleitoral como gatilho psicológico para insuflação de uma turba na investida enfurecida contra o patrimônio coletivo, promovendo a pregação da derrubada do Estado de Direito, a resistência à voz das urnas e seu negacionismo terraplanista, o clamor por intervenção militar, a aposta no conflito a quem pensa diferente. Tudo seria "aceitável" aos "patriotas" porque sinônimo de liberdade de expressão, sob pena de censura. E não, não se trata de meia dúzia de gatos pingados os que pensam assim.

O que desaguou no 8/1 revela um movimento voltado a provocar o caos para com isso criar as condições para um golpe. Não foi um plano mirabolante de vilania de animação. Longe disso. Foi pior. Nada obstante, há quem compreenda que a democracia jamais esteve com a cabeça a prêmio, sob a mira dos assassinos de aluguel do golpismo, e que o real vilão é o establishment pró-status quo, personificado no STF.

É aí que entra a síndrome da cegueira deliberada ou síndrome de avestruz. O indivíduo escolhe acreditar que está tudo bem à sua volta, e, como cidadão, no que importa ao tema deste artigo, compra a ideia de que a democracia jamais correu perigo real no Brasil. Vai além e professa que a liberdade de expressão autoriza, sem repercussões, reivindicar qualquer tese, inclusive, a ruptura institucional. Os fatos, porém, aí estão e a mensagem é tudo menos dúbia. Resistir aos fatos não os leva a evaporar diante dos olhos.

Quando se fecha com tijolos e argamassa uma janela não se apaga a paisagem que ela emoldura. Fingir que a divisão ideológica não é o problema que é, que amizades e famílias não estão se perdendo por isso, não reduzirá o quadro verídico a uma proposição inofensiva. Se não há como dizer que a democracia seja infalível, por que evidentemente não o é, há, sim, como dizer que fora da democracia não há sociedade capaz de aperfeiçoar-se em paz.

Concluo citando Ulisses Guimarães: "A história nos desafia a grandes serviços. Nos consagrará se os realizarmos e nos repudiará se deles desertarmos". É isso. Pela democracia, sempre. Não existe paraquedas se, nesse voo, o piloto for a óbito.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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