OPINIÃO

Recolhendo maná

Convém não esquecer que nada é aleatório: tudo é medido, calculado e previsto. Até mesmo a receita de canela e chá de casca de banana

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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER

Publicado em 25/02/2024 às 0:00 | Atualizado em 25/02/2024 às 23:35
Henry Kissinger, diplomata dos Estados Unidos - Brendan Smialowski / AFP

Tempo de quaresma! Lembrei-me disso quando reli a obra "viagem através de loucura" de Mary Barnes & Joseph Berke e encontrei a palavra maná. Uni a leitura fadigosa do livro com a aquarela que recebi, anonimamente, contendo a anotação: "Este é o seu retrato". O pacote abrigava a pintura de uma mulher triste com a face esquerda recoberta por cabelos castanhos e longos. Os olhos amendoados estavam inteiramente cerrados, quiçá em atitude de arrependimento dos pecados, quem sabe em momento de rara penitência. Relacionei maná, retrato e trabalho de Mary Barnes (pintura a dedo, com data de 1968), com o Êxodo, livro bíblico. Deus teria alimentado o povo judeu, por 40 anos, com o maná, durante a estada no deserto rumo à Terra Prometida. A iguaria - que fazia recordar minúsculas pérolas ou escamas formadas pela evaporação do orvalho sobre a areia do deserto - era colhida diariamente, triturada, cozida e finalmente assada para se converter em pão com sabor de mel.

Metaforicamente, estamos na estação de recolha do maná para a nossa indispensável humanização. A vida é mesmo uma teia de aranha na qual poderemos ser inexoravelmente presos ou fisgados com apenas uma frase. Isso parece loucura, mas ser louco, hoje, significa que estamos muito longe da verdade possível. Entre uma variedade de exemplos triviais, ouso citar as receitas de saúde publicadas nas redes sociais: o uso do abacaxi e do cravo para redução do inchaço no abdômen; a utilização do café para a cura do Alzheimer; a eficácia da berinjela para abaixamento do colesterol; o emprego da banana para descimento da glicemia. E tudo isso conta com a publicidade de profissionais da saúde. Recordo que a divulgação acerca da cura rápida do Alzheimer com o auxílio da canela é conduzida por uma senhora que se apresenta como neurologista e exibe a mãe como exemplo de cura milagrosa.

As pessoas que seguem tais receitas não devem receber o nome de incautos ou ingênuos. São apenas criaturas carregadas de desespero e de medo. A maioria fica tensionada e se enchendo de fé na expectativa do desfecho ou final do vídeo. É nessa fase que irão conhecer a fórmula milagrosa de ativar a memória, driblar a velhice, empanturrar-se de doces e de gordura, ter a pele viçosa e sem rugas. E pouco importa as conclusões inesperadas: foi necessário muito estudo e dispêndio financeiro para chegar aos resultados divulgados; o produto foi aprovado pela Anvisa; os laboratórios farmacêuticos são máquinas de multiplicar dinheiro e empobrecer a população com o custo abusivo dos medicamentos (isso é verdade); não se aconselha o preparo da poção milagrosa em casa porque a substância ou princípio ativo do produto só é encontrado nos jardins das Valquírias. Mais: todas as descobertas têm o aval de Universidades de renome - Cambridge, Princeton, Harvard... A última etapa da armadilha é o valor do medicamento. Adquirindo duas ou três caixas, o preço do "elixir" cai assustadoramente. Ainda é possível fracionar o débito com o auxílio do cartão de crédito. O discurso é intervalado pelo testemunho de inúmeras pessoas que usaram o remédio e adquiriram cura, bem-estar e prolongamento de vida.

Como se percebe, os predadores existem porque há caças em fartura. Tal acontece em todas as dimensões e setores da vida. A maioria deseja acreditar na magia ou feitiço do discurso, mesmo que não tenha nenhum sentido aparente. E uma indagação parece imperiosa: Quem protegerá os homens bons dos sicários? Essa pergunta - muito ajustada aos nossos dias - faz recordar um fragmento da entrevista de Noam Chomsky convertida na obra "ambições imperiais". O escritor narra que o New York Times publicou um artigo sobre diálogos ocorridos entre Kissinger - recentemente falecido - e Nixon. Kissinger batalhou nos tribunais, sem sucesso, para impedir que as transcrições fossem publicadas. E qual o fato impactante narrado por Nixon? O ex-presidente avisou a Kissinger que esperava lançar um ataque maciço contra o Camboja, sob disfarce de transporte aéreo de suprimentos: "Quero que eles ataquem tudo". Kissinger transmitiu ao Pentágono a ordem de executar uma "forte campanha de bombardeio no Camboja. Tudo o que voa e tudo o que se move". Chomsky divulgou esse episódio em palestras e concluiu que as pessoas não deram qualquer relevância ao episódio. Afinal, o relato do expositor parecia impossível porque a mentira é bem mais fácil de aceitar. Por isso o fato nem precisaria ser apagado da história, porque jamais faria parte dela.

Tal narrativa de Chomsky tem a ver com o momento de engenharia de vaidades e de contradições que estamos a viver no cotidiano. Mais adequado seria falar de uma salsada pretensiosa, extravagante e incongruente de fatos históricos. E nem sempre é possível explicar as contradições de forma a compreender o que elas escondem. Afinal, sob a aparência de ignorância é factível identificar o desejo de mostrar falsa sabedoria ou liderança e permitir ao outro camuflar a verdade e represar a consciência do que acontece à nossa volta. Convém não esquecer que nada é aleatório: tudo é medido, calculado e previsto. Até mesmo a receita de canela e chá de casca de banana.

Dayse de Vasconcelos Mayer, professora universitária e advogada.

 

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