OPINIÃO

Sensatez - item escasso

Com o Real, o país acreditou no governo que não recorreu a "pacotes-surpresa" de medidas, sempre frustrados, nem congelamento de preços...

Cadastrado por

TARCISIO PATRICIO

Publicado em 09/07/2024 às 0:00 | Atualizado em 09/07/2024 às 10:34
FHC autografando notas do Real na campanha de 1994 - Divulgação Fundação FHC

A comemoração dos 30 anos do Plano Real (e do rebento Real, a moeda), nos primeiros dias deste Julho, cumpriu papel pedagógico de revisitar o Plano que redimiu esta Nação, então engolfada na peculiar hiperinflação brasileira. Papel reforçado pela sensata observação da Profa. Maria Hermínia Tavares (USP e Cebrap), na Folha de São Paulo (03/07/2024): "É de lembrar que nunca se tratou apenas de devolver valor à moeda. Havia uma ideia de país por trás de tudo; uma ideia social liberal", chamando atenção para o Plano de Ação Imediata (PAI), um dos preparativos do Plano Real, lançado 12 meses antes do nascimento da nova moeda.

O PAI era um programa fiscal para dar solidez ao que viria; um dos pilares para racionalização dos gastos públicos. Programas de privatização foram iniciados, com bom saldo na área de telefonia, a despeito de polêmicas no que era um processo de inovação institucional. No primeiro quinquênio, a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000) e, bem antes, a criação das Agências Reguladoras (primordial na regulação de mercados na área de serviços públicos). Modernização da economia, sim. A despeito disso, dezenas de propostas de reformas institucionais naquela fase de mudanças ficaram engalhadas no Congresso.

Infelizmente, é flagrante que a ode aos 30 anos da moeda Real, neste momento, encontra um país que regrediu na trajetória institucional iniciada há três décadas. Daí o aqui enaltecido caráter pedagógico deste aniversário da já longeva moeda. Mas, o poder público necessita, urgentemente, ter lucidez no manejo dos recursos - públicos! - para o que é essencial que sejam alcançadas as metas fiscais arduamente pactuadas pelo Ministro Haddad, que já chegou, em alguns momentos, a parecer um Quixote.

De fato, vendo-se o Congresso que neste momento temos, com seus bilhões de orçamento chapa-livre, para gáudio de grupos de interesses não-republicanos, é difícil o ter ânimo. Não só o Congresso. E as assembleias estaduais, a exemplo da nossa, a pernambucana…O G1 PE e a TV Globo divulgaram, recentemente, que a Assembleia Estadual - conforme decisão dos próprios parlamentares - destina a cada deputado, a partir deste Julho 2024, além do salário de R$ 33 mil, R$13,8 mil (auxílios moradia, saúde e alimentação). Por cima disso, R$ 60 mil de "cota parlamentar" (reajuste de 103% nos últimos três anos) para aluguel de imóveis, veículos, alimentação, pagamento de palestras, contas de telefone. O orçamento 2024 da Assembleia alcança R$ 49,5 bilhões. Curioso seria vermos o valor global de 27 assembleias estaduais neste país em que lucidez e sensatez são, para um bocado de alguns, avis rara.

Não é só na política que falta sensatez. Além do presidente Lula, há muitos cidadãos que nunca engoliram o Plano Real, atribuindo a este, mais especificamente ao "neoliberal" FHC, adoração de juros altos e amor ao danado do capital financeiro, e considerando o então câmbio valorizado do Plano Real como fator gerador da longa crise da indústria (na verdade, crise iniciada em meados dos anos 1980).

E sem reformas institucionais há muito demandadas, difícil elevar a produtividade da economia, há décadas em passo de cágado, e se eliminar óbices ao crescimento sustentado. Assim como sem equilíbrio fiscal, muito dífícil se garantir o necessário avanço em educação, habitação, saúde, saneamento, segurança… Em suma: ou o Brasil institui a sensatez, ou a insensatez nos trará mais três décadas de progresso manco.

ADENDO:

Estranhei, até onde percebi, o esquecimento - nas celebrações do Real - da qualificação da longevidade de nossa 'hiperinflação', que tem botão de arranque nos 110% do ano de 1980, um quinquênio antes do fim da Ditadura Militar. Década e meia de preços cujo acumulado jan-dez na véspera do Real teria chegado a encostar nos 5.000%, bem longe de chegar ao padrão da hiperinflação alemã (1923), exemplo-mor em que um pão chegou a um bilhão de marcos. Além da húngara (1946: quase incontáveis XXXões%), entre outras. O Brasil escapou de algo muito mais aterrador do que nossa relativamente modesta hiperinflação, por conta da convivência da sociedade com indexação generalizada (desde 1964, quando instituído o título público ORTN - Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, em que se baseava a poupança). 30 anos de indexação ajudaram a acomodar os agentes (empresários, trabalhadores, governos e cidadãos) no aceite da inflação diária compensada por um tanto de correção monetária no valor nominal dos ganhos - exceto os "sem conta bancária" e sem poupança, que sofriam o impacto pleno da carestia.

E assim o país não conheceu o "desaparecimento" da moeda, como a Alemanha. Ademais, desde o Plano Cruzado (1986), o uso de tablitas de conversão de preços a cada nova moeda, quando dos fracassados planos de estabilização antes da vitória do Real, ajudou a facilitar a imediata assimilação popular dos três meses de uso da URV (Unidade Real de Valor), embrião da moeda Real. No mais, a sociedade acreditou no governo que não recorreu a "pacotes-surpresa" de medidas, sempre frustrados, e nem repetiu a invenção do congelamento de preços.

Tarcisio Patricio,  economista e professor aposentado da UFPE.

 

Tags

Autor

Veja também

Webstories

últimas

VER MAIS