Histórias de brasileiros que, entre milhões, não deixam o Brasil parar no enfrentamento ao novo coronavírus

Isolamento social não significa paralisação. Milhões de brasileiros, de serviços essenciais ou não, pegam pesado no batente todos os dias
Marília Banholzer
Publicado em 03/04/2020 às 17:55
Diversos trabalhadores estão no batente, todos os dias, para fazer a quarentena fluir em tempos de coronavírus Foto: MARÍLIA BANHOLZER/JC


DIVULGAÇÃO - SELO PATROCINADO UNINASSAU

Para que o isolamento social proposto pelas autoridades sanitárias funcione, é preciso muito suporte. Água nas torneiras, fornecimento de energia, internet funcionando para garantir o home office, supermercados abastecidos e abertos... são apenas alguns dos exemplos de como o Brasil está longe de parar na crise do novo coronavírus.

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Serviços essenciais ou não, existe um batalhão de trabalhadores fazendo o distanciamento funcionar do seu ponto de vista mais prático. Até para um médico se deslocar até um hospital, ele precisa que alguém abasteça seu carro. E, quando alguém falece, seja por covid-19, acidente, ou outro motivo, essa pessoa precisa ser sepultada.

A definição de serviços essenciais depende de cada situação. Mas, no último dia 22 de março, o presidente Jair Bolsonaro determinou, através da da Medida Provisória nº 926/20, um total de 42 atividades que não poderiam parar. Assistência à saúde, telecomunicações, segurança pública, iluminação, serviços postais, transportes, todo setor de alimentos, entre tantos outras. Quem estiver nesse grupo pode abrir seus negócios e seguir prestando serviço à população.

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Por outro lado, os demais serviços foram encontrando um meio de seguir funcionando, preservando empregos, negócios e, ainda assim, respeitando a orientação de ficar em casa. É o caso do home office, saída que fez a contadora Karina Rodrigues, 32 anos, continuar realizando suas funções como funcionária da Unilever. "Eu não estar fisicamente na fábrica não faz com que as pessoas não exerçam suas funções. Ainda assim, precisam que eu continue fazendo meu trabalho, orientando a produção, por exemplo", conta.

Nem todas as profissões permitem esse trabalho remoto. O repositor de prateleiras precisa ir, todos os dias, cumprir seu expediente. Como acontece com Aítalo dos Santos, 24 anos, que chega a se sentir mais útil no momento em que supermercados seguem de portas abertas para não deixar faltar desde alimentos a material de limpeza.

CORTESIA - O repositor Aítalo dos Santos segue seu trabalho e se sente útil por poder manter o supermercado abastecido

"Tomo alguns cuidados para não pegar essa doença, mas fico até me sentindo mais importante por poder ajudar o outro nesse momento, repondo os produtos", diz. Ele é apenas um dos 1,8 milhão de funcionários do setor de supermercados no Brasil, seguimento que conta com 89,3 mil lojas espalhadas e representa 5,4% do PIB do País.

A cadeia que faz o isolamento social funcionar põe muita gente para trabalhar. O motorista de ônibus Pedro Julião, 37 anos, conta que se sente essencial neste momento de pandemia porque está nas ruas para transportar pessoas que podem, de alguma forma, combater o novo coronavírus. Mas ressalta que ainda se depara com muitos idosos circulando pelas ruas. "Tem viagem que a gente leva os trabalhadores para o serviço, mas, em alguns horários, eu só faço passear, ou sou chofer de idosos, aqueles que deviam se proteger, em casa, mas são teimosos", desabafa Pedro.

CORTESIA - O motorista Pedro Julião se diz satisfeito em poder transportar os trabalhadores, mas reclama dos idosos que insistem em passear de ônibus

O motorista de ônibus representa uma categoria que, segundo dados da Agência Nacional de Transportes Públicos (ANTP), arrecada mais de R$ 15 bilhões por ano, gerando aproximadamente 570 mil empregos diretos no Brasil.

Ainda não existem levantamentos que quantifiquem o número de pessoas que seguem trabalhando nesse isolamento social. Em geral, pesquisas macroeconômicas começam a ser feitas um mês após algum tipo de gatilho, como os primeiros casos de covid-19.

Mas a economista e professora do Centro Universitário UniFBV|Wyden Amanda Aires defende que todas as pessoas que continuam exercendo suas funções, nas ruas ou em suas casas, são a força pulsante para que a economia resista. Segundo ela, esse grupo de trabalhadores precisa se manter ativo para a subsistência da população. "O fato da pessoa não abrir a porta do seu negócio não quer dizer que os outros não estão trabalhando. Eu estou em home office, outros estão nas ruas. Serviços essenciais mantêm a subsistência da população, não estamos tendo desabastecimentos no Brasil", pondera Amanda.

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A economista reconhece que a parcela de negócios que precisaram ser fechados deve afetar, e muito, a economia nacional, mas seguir trabalhando é um dos principais caminhos para lutar contra o desemprego deixado pelo coronavírus. "O Brasil é o país do serviço, e a maior parte deles não está funcionando. O que se espera é de que haja 25 milhões de desempregados, então as empresas que hoje mantêm seus expedientes, mesmo que remotamente, são as que deixam a economia pulsando", avalia Amanda Aires.

Uma recente pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha mostra que, nos últimos dias, por causa do novo coronavírus, apenas 37% dos entrevistados não foram trabalhar. Essa parcela é, proporcionalmente, maior entre os mais jovens (44%), mais escolarizados (48%) e mais ricos (45% na faixa de renda familiar de 5 a 10 salários, e 48% na faixa superior a esse valor). Entre os assalariados registrados, 27% não foram trabalhar, ante 38% dos autônomos e profissionais liberais, e 49% dos funcionários públicos.

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Ainda no âmbito do trabalho, 78% das pessoas são a favor de seguir trabalhando em casa. O número chega a ser maior do que os 73% dos brasileiros a favor do governo proibir, por algum tempo, todas as pessoas de saírem às ruas. Números como esses mostram que o brasileiro sabe que é preciso respeitar o isolamento social e, ao mesmo, tempo seguir trabalhando.

O advogado trabalhista Bruno Felix, do GCFH Advogados, comenta que a relação de trabalho entre os funcionários e empregadores neste momento de orientação pelo isolamento social fica sensibilizada. "No caso dos serviços essenciais, os funcionários precisam fazer seus papéis, não podem se negar. As outras empresas, por sua vez, negociam formas de seguir trabalhando de uma maneira que respeite a orientação do isolamento, garantindo a saúde do trabalhador e a continuidade das funções. É uma linha muito tênue", avalia o advogado.

Nesse contexto de fazer a roda girar, restaurantes estão de portas fechadas, mas encontraram no delivery uma forma de reduzir os prejuízos. Contam com cozinheiros e seus auxiliares, além dos motofretistas para fazer entregas aos clientes. O autônomo também busca caminhos para se manter ativo e necessário em tempos de pandemia, como os cabeleireiros e manicures que oferecem serviços nas residências. Tudo para pagar os boletos que seguirão chegando, inclusive pelas mãos dos carteiros, categoria que conta com 57 mil profissionais responsáveis pela entrega anual de bilhões de objetos postais.

E, como diz uma célebre frase do clássico livro O Pequeno Príncipe: "O essencial é invisível aos olhos". Em casa, seguindo o isolamento, nem todos enxergam que profissionais da segurança pública, limpeza urbana, manutenção de forma geral, seguem fazendo o seu trabalho. O cabo da Polícia Militar, Diego Oliveira, é um dos cerca de 19 mil PMs que garantem a segurança dos pernambucanos. "O serviço policial militar continua inalterado. Estamos tomando os cuidados devidos, como a higienização. Mas somos reconhecidos por algumas pessoas que nos encontram nas ruas, durante o policiamento, com palavras de apoio e sempre nos desejando cuidado para que não possamos contrair o novo coronavírus", ressalta ele.

DIVULGAÇÃO PMPE - Policial Diego Oliveira, da Rocam, é mais um trabalhador que segue no batente durante quarentena do coronavírus

Além dos que trabalham para manter seus empregos e o sustento das suas famílias, há ainda voluntários espalhados por diversas cidades do Brasil se doando para que pessoas em vulnerabilidade passem pela pandemia de maneira menos dolorosa. Há um ano, a designer gráfica Roberta Maranhão criou o Movimento Inspire, que, nesse período da covid-19, tem realizado entregas de kits de higiene e alimentos aos moradores de rua. "A gente não para, sempre nos comunicando, fazendo chegar algo até alguém", resume. Inspirador.

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Bem abastecido

O caminhoneiro Adelson Ramos, 54 anos, é de Serra Talhada, no Sertão pernambucano. Mas em casa é onde ele menos fica. Passa, em média, três semanas viajando em seu caminhão, levando e trazendo produtos diversos, “o que couber na carreta”, como diz ele. Nesse período de combate ao coronavírus, afirma que não pode deixar de trabalhar, pois entende a necessidade da sua função para quem está em casa, cumprindo a quarentena: “Se não fossem os caminhoneiros, estaria tudo desabastecido, e aí ficaria mais complicado”, afirma orgulhoso.

CORTESIA - Adelson Ramos, caminhoneiro

Luzes sempre acesas

A eletricista Letícia Bezerra, 24 anos, sai todos os dias para prestar serviços na Prontidão 24 horas da Celpe e deixa o filho de 3 anos com a avó dela, uma senhora de 70 anos. A jovem diz que seu trabalho ajuda a garantir que as pessoas fiquem em casa, mas também revela que a garantia de energia elétrica permite os que respiradores nos hospitais sigam operando. “Sei que, ao sair me arrisco, mas tenho que trabalhar. Além disso, o que seria das pessoas que estão nos hospitais onde fazemos as manutenções preventivas?”, questiona Letícia.

CORTESIA - Letícia Cristina Bezerra, eletricista

O lixo está mais pesado

O gari Henrique Rafael da Silva, 25 anos, diz que tem precisado se esforçar mais durante esse período de quarentena contra o coronavírus e que o trabalho extra tem sido recompensado pelo reconhecimento das famílias, que chegar colocar recados nos muros agradecendo a coleta dos resíduos. “As pessoas estão produzindo mais lixo, os sacos estão mais pesados, mas estamos dando o máximo para manter tudo limpo”, conta ele. Henrique ainda afirma que, por trabalhar com lixo, os cuidados com a higiene sempre foram prioridade entre os garis.

CORTESIA - Henrique Rafael da Silva, gari

Cemitérios estão abertos

“As pessoas continuam morrendo e precisam ser enterradas”, resume o coveiro Odenir de Oliveira, 54 anos. Ele trabalha no Cemitério de Águas Compridas em Olinda e garante que serviço não tem lhe falto, embora reconheça que o isolamento social fez diminuir o número de falecimentos por acidentes e ou causas violentas. Odenir diz que não sente qualquer reconhecimento pelo seu trabalho, mas segue certo que ele é essencial. “Eu preciso do serviços para sustentar minha famílias e as pessoas precisam que eu venha fazer o meu trabalho. Simples assim”, pontua.

CORTESIA - Odenir Gerônimo de Oliveira, coveiro

Farmácia é vida

O gerente de farmácia Hiran Habif, 27 anos, conta que manter as drogarias abertas é essencial. Desde os medicamentos mais usuais aos mais complexos, todos precisam estar disponíveis para que a população esteja assistida. Saber da importância de manter as portas abertas, no entanto, não faz com que o trabalhador não tenha receio em se contaminar pelo novo coronavírus. "A gente tentar tomar todos os cuidados, mas trabalhar com o público, ainda mais nesse ramo, é muito perigoso nesse momento. Eu tenho medo de levar algo para casa, sem dúvida", afirma.

CORTESIA - Hiran Habif, gerente de farmácia

Tanque cheio, senhor?

O frentista Tiago da Costa, 30 anos, sai de casa todos os dias para cumprir sua função. Ele lembra que esse os postos de combustíveis não estivesse funcionando corretamente vários problemas poderia ser gerados. O principal seria o desabastecimento para quem precisar, assim como ele, estar nas ruas diariamente e trabalhar. "Ninguém nota, mas já imaginou se ficasse tudo fechado? Seria igual a greve dos caminhoneiros, que ficou tudo travado", relembra.

CORTESIA - Tiago da Costa, frentista
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