O uso de um dispositivo chamado de Cápsula Vanessa, que promete auxiliar pacientes e profissionais de saúde no combate ao novo coronavírus, se transformou em denúncia na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Imbiribeira, na Zona Sul do Recife. De acordo com profissionais de saúde da unidade, o dispositivo estava sendo utilizado sem estudos que comprovassem sua eficácia, devido à determinação da direção administrativa da unidade. Após a denúncia, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) informou à reportagem do Jornal do Commercio, em nota, que o equipamento não seria mais utilizado. O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) também se manifestou a respeito do caso.
Os profissionais de saúde da UPA alertaram que, além do uso da Cápsula Vanessa, os pacientes estariam sendo impedidos de serem transferidos para a UTI, e até de serem intubados, por causa da cápsula. O Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe) enviou um ofício ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e registrou um boletim de ocorrência sobre o caso.
Uma profissional de saúde que trabalha na UPA, e preferiu ter sua identidade preservada, conta que o dispositivo, desenvolvido em Manaus, chegou à unidade na última quinta-feira (30). De acordo com ela, os médicos e enfermeiros foram informados de que a empresa Samel faria um treinamento de como utilizar a estrutura. Após a chegada de funcionários da empresa, a cápsula, então, foi utilizada em um paciente que deu entrada com baixa saturação de oxigênio no sangue, sintoma frequente em pessoas com o novo coronavírus.
"O paciente foi colocado dentro do cápsula e melhorou com a VNI (Ventilação Não-Invasiva). Mas a empresa acabou designando um fisioterapeuta, que ficaria na UPA para ajudar no uso da cápsula. O problema é que os pacientes começaram a ser impedidos de ser transferidos por este fisioterapeuta, mesmo com recomendação dos médicos, com o respaldo da direção administrativa da UPA", relata.
A cápsula, desenvolvida pelo Instituto Transire, em parceria com a empresa Samel, promete reduzir os riscos de contaminação dos profissionais de saúde e de outros pacientes internados ao se fazer a VNI em pessoas com suspeitas de covid-19. A VNI consiste na aplicação de suporte ventilatório ao paciente com o uso de uma máscara ou bocal. Diferentemente da intubação, que requer a inserção de um tubo na traqueia da pessoa, a VNI é uma técnica não invasiva, porém, não é indicada nos casos de infecções pelo novo coronavírus, justamente pelo risco de disseminação da doença.
A profissional de saúde diz, também, que a direção estaria coagindo as equipes de enfermagem a não seguir as recomendações dos médicos. "Dois pacientes conseguiram vagas para a UTI, já que a UPA não tem condições de tratar estes pacientes graves, nem tem ventilador pulmonar para todos. Os médicos solicitaram a transferência e foram impedidos pelo fisioterapeuta da Samel. A empresa está conduzindo um estudo ilegal, sem comprovação, sem termo de consentimento, sem nada. Ninguém do corpo médico concorda com a conduta da direção", comenta a profissional.
Na manhã deste domingo (3), a direção do Simepe esteve na unidade de saúde para realizar fiscalização, segundo o Sindicato, após receber denúncias sobre interferências na autonomia dos médicos por parte da gestão da UPA da Imbiribeira.
“Durante a fiscalização foi confirmada a veracidade das denúncias e o Simepe, de imediato, deu ciência ao Cremepe e, por se tratar de uma situação de emergência, será feito contato hoje mesmo com o Secretário de Saúde do Estado - já que a SES é a responsável pela gestão das UPAs. Será enviado também ofício para Ministério Público de Pernambuco (MPPE), relatando o que está ocorrendo e, por fim, registro boletim de ocorrência sobre essa situação”, diz a nota.
No fim da tarde, a Secretaria Estadual de Saúde disse que "a utilização das cápsulas ventilatórias foi uma iniciativa da organização social que gere a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Imbiribeira. Em comum acordo com a direção do serviço, ficou decidido que o equipamento não será mais usado para os pacientes com suspeita do novo coronavírus", duiz um trecho da nota. A seguir, ela completa: "A SES-PE reforça que produziu um protocolo clínico epidemiológico para orientar as equipes de saúde sobre o manejo clínico do paciente suspeito ou confirmado para Covid-19. A Secretaria também ratifica a autonomia médica na conduta terapêutica de cada paciente, sempre seguindo, também, as recomendações dos protocolos existentes."
O Cremepe também se manifestou e afirmou que "tomou ciência desta situação na UPA Imbiribeira, na madrugada deste domingo (03/05/2020) e notificou a unidade com um indicativo de interdição ética. A notificação solicita explicações da direção técnica do estabelecimento de saúde, no prazo de 24h", diz a nota enviada ao JC.
"Consiste em uma armação leve e resistente formada por canos de PVC, tornando a estrutura leve, podendo ser movimentada e retirada por qualquer pessoa, facilitando seu manuseio e higienização. A cabine é revestida por uma película de vinil transparente que dá visibilidade ao paciente e auxilia na contenção do contágio, conta com aberturas em zíper para oferecer janelas de contato entre paciente e corpo médico".
Esta é a descrição da Cápsula Vanessa, que consta no site da empresa Samel. A estrutura ainda possui um exaustor e alças. "Nós estivemos no estado de Pernambuco, na cidade de Recife, na UPA de Recife. Lá, nós conseguimos aplicar a nossa técnica na frente de mais de 30 pessoas e nós temos o vídeo, o depoimento da médica de dois pacientes que iriam sofrer a intubação orotraqueal e que foram tratadas na hora com a nossa Cápsula Vanessa", diz o presidente do grupo Samel, Luiz Alberto Nicolau, em vídeo de divulgação da estrutura nas redes sociais.
De acordo com a empresa, além de Pernambuco, a cápsula também está sendo utilizada no Pará, Roraima e Acre. "Nós, da Samel, e do Instituto Transire, não temos nenhum fim lucrativo. Todos os lugares que nos chamarem, nós iremos aplicar a prática, dar o treinamento, tudo de forma gratuita", completa, ainda, o presidente do grupo.
Em documento assinado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), pela Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede), pela Associação Brasileira de Fisioterapia Cardiorrespiratória e Fisioterapia em Terapia Intensiva (Assobrafir) e pela Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (Sobrasp), de abril de 2020, as entidades fizeram considerações sobre dispositivos como a Cápsula Vanessa.
Entre os pontos levantados pelas associações estão a falta de estudos clínicos que comprovem a eficácia do dispositivo como forma de proteção para os profissionais de saúde e a necessidade de descontaminação da estrutura por meio de uma autoclave (aparelho de laboratório utilizado para esterilizar materiais), técnica que poderia destruir o dispositivo.
"Na atualidade (abril/2020) não há estudos científicos que comprovem que a utilização de câmara, tendas e boxes para contenção de aerossóis durante a aplicação de oxigenoterapia suplementar e/ou uso de Ventilação Não-Invasiva traga benefício clínico no atendimento do paciente com infecção suspeita ou confirmada por coronavírus", diz a nota técnica.