Para onde se olha, o cenário é o mesmo. Nas cinco cidades da Região Metropolitana do Recife submetidas, desde sábado (16), ao regime de quarentena, a covid-19 avança com maior velocidade nos bairros mais pobres e populosos, acumulando casos graves da doença e multiplicando mortos. É na periferia, pelo conceito mais amplo da palavra, que estão concentradas as maiores taxas de letalidade. Justamente onde as pessoas mais estão morrendo é que as ruas continuam apinhadas de gente. Manter essa população em casa, diante do caos econômico e social que a pandemia impôs a milhares de trabalhadores, é a prova de fogo para o sucesso da quarentena em Pernambuco. A guerra contra a contaminação da covid precisa ser vencida, especialmente, nas favelas e comunidades carentes. Não será fácil. Primeiro: não há um plano específico de fiscalização para essas áreas. Segundo: nenhum outro Estado, que adotou antes medidas mais restritivas para deter o coronavírus, conseguiu esse feito. Mas trava-se aqui uma luta contra o tempo.
Paulo Roberto Barros: É nas favelas onde fica o centro da pandemia do coronavírus no Recife
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Uma análise dos boletins epidemiológicos dos cinco municípios incluídos no decreto evidencia o estrago que a doença vem fazendo nos bairros mais pobres. Há um padrão em todos eles: mesmo não sendo ainda as áreas que lideram o ranking de casos graves é nesses locais que está o maior número de óbitos ou a maior letalidade. Desde o início da pandemia, Boa Viagem, na Zona Sul, detém o maior número de casos graves e de mortes no Recife: são 407 registros e 29 mortes, até o boletim divulgado neste sábado (16). Mas o bairro da Cohab, também na Zona Sul, que sustenta o segundo lugar de óbitos da capital, com 23 casos, tem um terço da quantidade de casos graves de Boa Viagem (132). Isso significa que a letalidade na Cohab, considerando apenas os casos graves, é quase três vezes maior que a do bairro vizinho, mais rico. Com o agravante de que o primeiro caso notificado na Cohab surgiu, em média, só três semanas depois do primeiro registro de Boa Viagem.
Em Jaboatão dos Guararapes, a história se repete. Embora Piedade, bairro com perfil socioeconômico semelhante ao de Boa Viagem, lidere o total de casos graves, com 133 registros, é em Cavaleiro, bairro com população de renda mais baixa, que está a maior quantidade de mortes da cidade: 21 vítimas, apesar de ter notificado quase metade dos registros graves de Piedade (80). Cavaleiro, inclusive, é apontado pela prefeitura, como uma das regiões com menor índice de isolamento social. Lá, assim como em Prazeres e Jaboatão Centro, a combinação de mercado público, feiras livres, agências bancárias e loterias produz diariamente cenas de aglomeração que colocam por terra qualquer tentativa de quarentena.
No Recife, a prefeitura não divulga o índice de isolamento social por bairros. Apenas a média geral da cidade, que, na última sexta-feira (15), estava em 48,9%, bem longe dos 70% necessários para achatar a curva de contaminação e evitar o colapso do sistema público de saúde. Mas, mesmo sem apontar bairros específicos, a capital enfrenta os mesmos problemas de aglomeração em torno de lojas e comércio informal em bairros pobres e populosos. A resistência em aderir ao isolamento social se traduz nos indicadores epidemiológicos dessas áreas. Afogados, na Zona Oeste, que tem registrado cenas diárias de aglomeração nos pontos de comércio popular, possui uma das maiores taxas de letalidade da capital. Até sábado (16) o bairro já registrava 20 mortes de um total de 98 casos graves notificados, o que dava um percentual de 20,4% de letalidade pela covid-19.
Um estudo feito pelo Instituto para Redução de Riscos e Desastres (IRRD), parceria entre a Universidade Federal e Federal Rural de Pernambuco que tem produzido mapas diários sobre o coronavírus no Estado, mostra como o avanço das mortes nas comunidades pobres tem sido avassalador. No dia 14 de maio, 60% dos casos graves registrados no Recife concentravam-se em bairros com renda média superior a 4,24 salários mínimos. Já os bairros mais pobres, com renda de até 2,9 salários mínimos, contabilizavam 31% dos casos graves. Quando o recorte é feito considerando o número de mortes, a fotografia é outra: os bairros nobres concentravam 53% dos óbitos e os de baixa renda, 43% das mortes.
“Isso mostra a vulnerabilidade dessas áreas em responder à contaminação. Tanto as ações de saúde quanto as da quarentena precisam priorizar esses bairros. Seja pela resistência das pessoas em aderir ao isolamento, seja pelo acesso mais precário ao sistema de saúde. Tem que ter orientação e fiscalização específicas para essas áreas. Se for uma atuação a distância, não vai resolver. A polícia tem que chegar e ficar. Até que esse comportamento seja incorporado pela população”, defende o coordenador do IRRD, professor Hernande Pereira.
O JC conversou com gestores dos cinco municípios da RMR que estão sob regime de quarentena e todos apontaram a fiscalização mais rigorosa, como condição essencial para fazer a quarentena ter resultado prático. “Terão que ser duas frentes: a da conscientização e a da ação coercitiva. Vai precisar de ação mais firme não só do município. Sozinho não temos braços e pernas para fazer esse controle e garantir que as pessoas fiquem em casa”, diz a secretária de Saúde de Jaboatão, Zelma Pessoa. Para a prefeita de Camaragibe, Nadegi Queiroz (Republicanos), se não houver medidas punitivas, o decreto não terá eficácia. “Não vai resolver, porque já estamos conscientizando a população há meses. Em Camaragibe, o comerciante que insistir em continuar funcionando sem permissão terá a loja interditada e a licença de funcionamento cassada”, afirma a prefeita.
O secretário de Saúde do Recife, Jaílson Correia, reconhece que não há como garantir uma onipresença da ação fiscalizadora nas cinco cidades. “Até porque o Estado tem um limite na sua capacidade de atuação ostensiva. Por isso que o reforço das Forças Armadas faz tanta falta. Mas tentamos fazer o melhor desenho para alcançar o máximo de resultados”, destaca. Joanna Freire, diretora-executiva de Vigilância à Saúde, da Secretaria de Saúde do Recife, avalia que, diante da extrema desigualdade social do País, a quarentena não pode ser vista como única resposta para conter o avanço da contaminação. “Ela não vai ser a bala de prata. Porque não existe bala de prata no enfrentamento da covid. É mais uma medida que se soma aos esforços que vêm sendo feitos. Precisa ser uma combinação de ações integradas de controle urbano, polícia, vigilância sanitária e a ampliação constante da rede de assistência de saúde.”
Responsável pelo planejamento e execução das medidas de fiscalização, o secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, afirma que o Estado não montou um plano específico para atuação da polícia nos bairros pobres e de maior densidade populacional. “A abordagem operacional se dará em todos os locais em que houver aglomeração e desobediência ao decreto de quarentena. Já recebemos mais de 53 mil denúncias de pontos que não estão respeitando as recomendações. Mais de 300 autuações já foram aplicadas”, informa. Batizada de Operação Choque de Ordem, a fiscalização vai contar com efetivo de 400 homens da área de segurança, entre policiais civis e militares, bombeiros e guardas municipais. Pelo que se viu, de terça até sexta-feira da semana passada, quando a quarentena teve caráter apenas educativo, e novamente neste sábado (16), com o decreto já em vigor, as medidas na periferia estão bem longe de ter a eficácia necessária.
“A periferia é como se fosse uma cidade independente. Aqui ninguém parou. Continua tudo normal, entre aspas, né? Um ou outro fecha seu comércio. Mas a maioria continua abrindo, para garantir a sobrevivência. Lojas de móveis, armazéns, banca de bicho, ambulante, tá tudo igual.” A constatação é do líder comunitário Pedro Leite, morador da Cohab, bairro da Zona Sul que está em segundo lugar no número de mortes por covid-19 no Recife. Ele acredita que a quarentena, que começou a vigorar ontem, só vai ter eficácia se a polícia e os órgãos de controle fizerem fiscalização contínua no bairro. Mas, apesar de defender a importância da medida fiscalizadora, Pedro Leite teme que a ação venha acompanhada de excesso policial. “A polícia na favela já chega batendo. Eu tenho certeza de que eles vão vir muito agressivos. Porque é assim que funciona nas comunidades pobres.”
Ele não está sozinho nessa preocupação. Pedro Stilo, acelerador social da comunidade do Bode, no Pina, também na Zona Sul da capital, diz que o Estado precisa ficar atento para coibir os excessos. “A Secretaria de Defesa Social precisa acatar as denúncias, quando elas chegarem. Porque não temos dúvidas de que a polícia vai chegar aqui com violência.” Stilo cobra estratégias de ação voltadas para a periferia, além da fiscalização. “Aqui tudo se resolve na rua. É uma utopia imaginar que toda a cidade tem condições de cumprir o decreto de quarentena da mesma forma. A epidemia só escancarou a gigantesca desigualdade social e a privação de direitos que a periferia já sofre desde sempre. Não adianta fazer rodízio de carros e não aumentar a oferta de ônibus para evitar aglomerações. Vai contaminar ainda mais quem precisa pegar transporte público.”
Por ser uma comunidade que depende da pesca e da venda de mariscos para sobreviver, o Bode desconhece o que é isolamento social. Pedro Stilo diz que só na área cerca de 600 famílias moram em palafitas. “É uma média de seis pessoas em cada família vivendo em uma palafita, com o calor e todas as insalubridades de um barraco de madeira fincado no mangue. Como exigir que essas pessoas fiquem dentro de casa?”, questiona o líder social. A saída para tentar mobilizar a comunidade, diante de tantas dificuldades, tem sido a comunicação feita pelos próprios moradores. “A gente tem tentado passar um papo reto, falando o nosso próprio dialeto, ajudando com distribuição de cestas básicas, kits de higiene, dando algum tipo de assistência. Sem essa ajuda, fica difícil.”
Coordenadora da Central Única das Favelas (Cufa), em Pernambuco, Altamiza Melo, afirma que o decreto só vai dar certo se for adotada uma estratégia de comunicação que fale a linguagem da periferia. “Na favela, o lockdown traz um efeito colateral direto no bolso do morador. Entre o medo de se contaminar e a fome, o trabalhador prefere ir para a rua e se arriscar. Não é fácil fazer essa conscientização.”
A infectologista Ana Maria de Brito, da Fiocruz Pernambuco, reconhece que a quarentena é fundamental para deter a explosão de casos de covid no Estado, mas diz que a medida só terá eficácia se vier acompanhada de ações concretas de assistência econômica e de atendimento médico à população mais pobre, mas sem deixar de proteger a saúde dos mais necessitados. Ela cita, por exemplo, que o pagamento do auxílio emergencial tem sido um dos responsáveis pela disseminação do vírus na população vulnerável. “Até o início do pagamento do benefício, o Nordeste tinha 470 municípios com registro de covid. Dez dias depois, 897 cidades já tinham notificação de casos. Não sou contra o pagamento. Mas essa ajuda precisa ser feita preservando a vida das pessoas.”