A aposentada Maria Célia Valença completa nesta quarta-feira (1º) um marco que muitos não puderam cumprir durante a pandemia do coronavírus: 100 dias que ela não sai de casa. Passar tanto tempo a quatro paredes não é uma tarefa fácil, mas além de ser do grupo de risco - ela tem 66 anos -, a idosa entende que se ela tem condições de ficar em casa, “não há motivo para não ficar”. Nesses mais de três meses isolada, a aposentada passou a valorizar mais a vida e percebeu que é “possível viver bem com muito pouco.”
É justamente esse pensamento de Maria Célia que a psicóloga Mylena Thompson aponta como uma nova prioridade em momentos de exceção como o que estamos vivendo. “Uma das prioridades desse tempo de quarentena deve ser a garantia de suprimentos necessários a vida, como a alimentação, medicamentos, assistência médica e financeira, entre outros. Isso produz uma sensação de amparo e acolhimento”, observa. Quem também defende esse olhar sobre a vida é o psiquiatra e psicoterapeuta Amaury Cantilino. “Eu penso que o único antídoto que nos resta é a convicção de que, diante de uma situação em que pessoas estão morrendo, estão internadas em UTI, a possibilidade de estar seguro em casa tem muito valor. É pensar que a sobrevivência é a prioridade nesse momento”, reflete.
Antes da pandemia, Maria Célia tinha uma vida bastante agitada. Gostava de passear no shopping, sair com as amigas no final de semana, viajar para visitar familiares e caminhar todos os dias na orla do Pina, na Zona Sul do Recife. Agora, o local mais distante que ela esteve foi a portaria do seu prédio, para buscar os pedidos da feira e farmácia que ela faz sempre de forma online, já que mora sozinha. Sua rotina teve que ser modificada para dentro do lar, mas isso não fez com que a aposentada deixasse de cuidar de si.
Entre sua coleção de bonecos de crochês e muitas leituras, ela tem até feito cursos online de jardinagem e produção de velas. Religiosa, busca fazer orações enquanto caminha e conta que tem assistido até mais missas pelo YouTube e pela TV nesse período em casa. Todo esse tempo também motivou Maria Célia a criar uma espécie de “diário da quarentena”. Ela passou a registrar o que tem feito cada dia que passa, criando memórias desse período de isolamento e foi com ele que chegou a contagem dos 100 dias. A comemoração do centésimo dia firme e forte ainda está por ser escrita.
Da mesma forma que Mária Célia tem se cuidado das formas que encontrou, Lorena Asfura, estudante de psicologia na UFPE, 23, também tem procurado maneiras de não se negligenciar durante os mais de 100 dias que está isolada com sua família, com apenas três saídas para atividade essenciais. A pandemia fez com que ela migrasse de uma rotina puxada de estudos na faculdade para uma drasticamente oposta. Com o tempo, ela percebeu que esse vazio de atividades passou a afetá-la e buscou a criar uma rotina, que ela defende ter sido muito importante para ela.
Mesmo com a universidade parada, a estudante buscou se envolver em projetos da UFPE como grupos de estudos. Embora ela tenha parado as sessões de terapia na pandemia, vem exercitando novos hábitos. “Tenho tido outras forma de auto cuidado. Passei a me envolver em movimentos sociais, tenho pintado quadros em aquarela e feito exercícios físicos dentro de casa”. Ela acredita que conseguiu lidar melhor do que imaginava com a pandemia porque, principalmente, teve uma rede de apoio. “Mesmo distante, você ter pessoas para conversar nem que seja por ligação ou videochamada, ajuda muito”, reflete.
Assim como percebeu Lorena, o psiquiatra Amaury também acredita na força desses vínculos. “Estamos nos dando conta de quem fica quando o turbilhão da vida para. De quem sentimos falta. Quem realmente se importa conosco, com quem podemos contar. Como tem sido a qualidade dos vínculos familiares e com os mais próximos. E, sobretudo, quem são esses mais próximos”, pontua. Ele também aponta que há grupos que sentem com mais intensidade a solidão provocada pelo isolamento, como é o caso dos adolescentes. Para a estudante do terceiro ano do ensino médio, Maria Isabel Veloso, 17, a pandemia tem sido um grande desafio. No ano do vestibular, teve que adaptar seu estudo para o formato online de forma repentina.
Como a estudante Lorena, Isabel também tinha uma rotina intensa entre os cursinhos e o colégio até chegar março, quando a pandemia passou a demandar o isolamento social que ela vem respeitando há mais de 107 dias. “O terceiro ano normalmente já era o mais carregado de pressão na vida escolar, e no meio da pandemia isso só se amplificou. Sem falar que absorver conteúdo por vídeo tem sido mais difícil”, relata. Mas ainda assim, ela tem buscado se cuidar com a prática da meditação, uma forma de cuidado pessoal que Mylena defende ter bons efeitos. “A prática de mindfulness enquanto técnica de meditação guiada, favorece uma maior consciência do corpo no estado presente, possibilitando uma redução da ansiedade, e consequentemente, o sofrimento a longo prazo”, explica.
Do outro lado da moeda, está também o idoso e aposentado Chico de Assis, 73. Embora não goste de fazer coisas por obrigação, como ele conta, Chico se vê obrigado a continuar em casa por se preocupar com a sua saúde e a dos outros. Como já tinha uma vida mais caseira antes, ele sentiu pouco impacto em passar tanto tempo em casa. Quando chegou aos 90 dias de isolamento, comemorou caminhando na praia em uma das suas únicas saídas. Sua rotina tem sido tomar banho de sol na varanda, se alimentar bem e ler muitos livros. Como é escritor, as palavras tem sido uma via para lidar com a pandemia: fez um poema metalinguístico chamado “Impotência Poética” para falar sobre a sua própria dificuldade de escrever em um momento que ele considera tão triste.
A maior falta que ele sente durante o isolamento vem de não poder visitar amigos, famílias e namorada, distância que tem sido driblada pela tecnologia. Uma estratégia também defendida pela psicóloga Mylena. “É importante pensar em estratégias que possam reduzir a ansiedade e o tédio nesse isolamento, já que são componentes que aumentam para o sentimento de angústia e preocupação com o presente e o futuro. A tecnologia pode ser uma aliada para manter o contato com amigos e familiares, além de consultas com profissionais especializados na saúde mental, como psicólogos e psiquiatras que aderiram ao atendimento online”, aconselha a profissional.
Seja qual for a forma que as pessoas encontram de se confortar e olhar para si, a recomendação mais valorosa, para o psiquiatra Amaury, é que tomemos consciência de que este período é estressante e sofrido, “mas ele vai passar.” E um dos exercícios para saber enxergar esse futuro melhor é a paciência. “Estamos exercitando a paciência, que é uma virtude super importante e que tem sido tão colocada de lado neste mundo contemporâneo. Que essa fase, então, vire uma oportunidade para que o ser humano seja mais paciente, mesmo quando tudo isso passar. Fomos obrigados a perceber que não temos controle sobre tudo. Sequer temos controle sobre os nossos planos. A vida exige adaptações e realinhamentos. Aprenderemos sobre flexibilidade”, reflete Amaury Cantilino.
Com novas prioridades, pessoas mostram que podem ousar a viver em meio ao caos e à crise. “Viver aquilo que inevitavelmente foge do controle humano, mas pede de cada um uma saída singular e estratégias saudáveis para enfrentar os medos e as inseguranças desse tempo. É um tempo de privilegiar a saúde mental, de olhar para nós mesmo com uma proposta de autoconhecimento”, observa Mylena Thompson.Saber viver