Com investigações em segredo de Justiça, desastre ambiental com óleo no Nordeste completa um ano sem muitas respostas

A Marinha do Brasil concluiu a primeira fase das investigações nesta semana e encaminhou as conclusões para a Polícia Federal, que conduz o inquérito criminal em sigilo
Katarina Moraes
Publicado em 28/08/2020 às 14:44
Segundo a Secretaria de Meio Ambiente de Pernambuco (Semas), 48 praias e 8 estuários de rios, em 13 municípios, foram atingidos pelo material Foto: BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM


Há exatamente um ano, o Nordeste começava a enfrentar o que seria a maior tragédia ambiental do litoral brasileiro. No dia 30 de agosto de 2019, pequenas manchas de óleo apareceram em praias dos municípios de Conde e Pitimbu, na Paraíba. Semana a semana, o material foi sendo encontrado em localidades vizinhas, chegando a 1.004 pontos do País, segundo balanço do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama).

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Em Pernambuco, a substância tóxica foi vista em 48 praias e 8 estuários de rios, em 13 municípios, contaminando a natureza e mobilizando centenas de voluntários, ativistas ambientais e até as forças armadas, que se uniram para tirar mais de 1.650 toneladas mil toneladas do material do litoral. A história, que parece ter sido encerrada em 2019, continua a afetar o meio ambiente, dessa vez de forma menos aparente enquanto investigações da Marinha Brasil e da Polícia Federal ocorrem em segredo de Justiça, processo que é criticado por especialistas.

A Marinha concluiu a primeira fase das investigações nesta semana e encaminhou as conclusões na segunda-feira (24) para a Polícia Federal, que conduz o inquérito criminal. Por nota, afirmou nesta sexta-feira (28) que o “processo investigativo administrativo contém informações que apontam o provável causador e a origem do crime ambiental”, mas não divulgou detalhes. A entidade afirmou, ainda, que a investigação é conduzida “dentro da competência e das atribuições da Autoridade Marítima, em coordenação com instituições nacionais e estrangeiras, além da participação de cientistas, possuindo relevantes conclusões e que, certamente, contribuirão para a investigação criminal em curso na PF”.

Em entrevista à Rádio CBN, nessa quinta (27), o Diretor do Centro de Comunicação Social da Marinha, João Alberto de Araujo Lampert, revelou que a lista de navios suspeitos passou de milhares para menos de 10. Confirmou também a origem venezuelana do óleo, o que não significa que ele tenha sido lançado por navios ou empresas daquele país. O material teria sido derramado a 700 km da costa brasileira em julho do ano passado, segundo as investigações.

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“A avaliação da dispersão do óleo, de como esse óleo chega ao Brasil, tudo isso levou a conclusões de que esse óleo foi lançado a leste do Brasil, a uma faixa de cerca de 700 km. A partir daí, os navios que trafegaram naquela região, em determinado período, foram navios de interesse na investigação. Essas conclusões foram entregues à Polícia Federal e essa lista aponta, ordenadamente, algumas hipóteses, probabilidades e alguns suspeitos”, afirmou Lampert.

O biólogo, oceanógrafo e professor da Universidade de Pernambuco (UPE), Clemente Coelho Júnior, reitera que o processo para revelar quem ou o que causou o maior desastre ambiental que já aconteceu no Brasil é, de fato, demorado, sendo ainda mais atrasado pelo período da pandemia da covid-19, mas reitera que falta transparência nas investigações. "A sociedade desconhece como foi feita essa investigação e quais as etapas dela foram concluídas. Dizer que foi lançado a 700 quilômetros já foi dito desde novembro do ano passado por especialistas da UFRJ. Não sei até que ponto o Governo Federal evoluiu. Na minha opinião, e na de outros ambientalistas, não houve nenhuma evolução, e não há transparência nas informações. A gente não tem noção de como elas foram realizadas", disse.

O secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco, José Bertotti, corrobora a crítica ao Governo Federal. “Um crime ambiental desse tamanho jamais deveria ter omissão por parte do Governo Federal. [...] A gente gostaria que houvesse essa divulgação para a gente conhecer mais, entender mais, tomar também nossas providências”. Ele afirma, ainda, que o Governo do Estado não recebeu o ressarcimento pelos gastos de R$ 7,48 milhões com a calamidade ambiental. “A gente mandou solicitação de ressarcimento, que está previsto no Plano Nacional de Contingência. [...] Como eles não identificaram ainda quem foi o responsável, não foi acionado seguro, e isso ficou por conta dos governos estaduais”, disse. Segundo o secretário, o Governo do Estado continua monitorando e fiscalizando as praias com o intuito de localizar novas manchas.

Não há na Lei de Crimes Contra o Meio Ambiente, de número 9.605, a necessidade de sigilo na investigação. No entanto, a advogada e doutora em Direito Marítimo e Ambiental, Ingrid Zanella, explica que o segredo de justiça pode acontecer desde que haja uma explicação plausível. "A ausência de acesso da população aos dados faz com que a gente não consiga ter outras linhas de pesquisa para investigarmos isso, faz com que a gente não tenha acesso aos trâmites que essa investigação ocorreu. Nós tivemos bens do Brasil que foram afetados, então a sociedade tem direito de ser melhor noticiada. Deve existir uma justificativa para isso não ser divulgado, porque, considerando a magnitude do dano, isso interessa a toda a sociedade", defendeu.

A reportagem do JC solicitou à Marinha do Brasil uma explicação sobre o porquê da investigação não ser amplamente divulgada e atualizará a matéria quando obtiver uma resposta. Já a Polícia Federal afirmou que "tem como política não comentar investigações em andamento, sigilosas ou não."

Os danos à natureza e a quem depende do mar

Em Pernambuco, desde o aparecimento dos primeiros fragmentos, equipes das prefeituras, moradores que dependem do turismo e da pesca, pesquisadores e voluntários fizeram um esforço heroico para retirar o material no braço. Muitos, inclusive, procuraram hospitais com sintomas provocados por reação ao produto, que é tóxico e não pode ser manuseado sem uso de equipamentos apropriados.

Apesar disso, foi inevitável que resquícios de petróleo continuassem no ecossistema até hoje. “Existem muitos fragmentos enterrados na areia, impregnados nas rochas, nos corais, nas árvores de mangue, que afundaram nos rios. Não temos a mínima ideia se ele (o óleo) se recompôs ou se passou por um processo de intemperismo. Esse petróleo ainda está liberando moléculas nocivas para a natureza, são compostos químicos que podem fazer grandes estragos, tanto na cadeia alimentar, quanto na saúde de peixes e plantas. Existe um risco significativo também para a saúde humana, já que o homem é o topo da cadeia alimentar”, explicou Clemente.

Levantamentos feitos pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), a partir do mapeamento de 201 praias em nove estados afetadas pelo desastre, mostram que 67,5% dos pescadores relataram queda de renda por conta do petróleo nas praias. A redução, em média, foi de 37,28%. Um dos trabalhadores prejudicados pelo derramamento de óleo foi o pescador Luciano Chalaça, que viu sua única fonte de renda ser comprometida: "Foi muito difícil, porque eu vivo disso". 

A relação dele com o mar, no entanto, vai além de questões econômicas. Nascido e criado em Maracaípe, Ipojuca, no Litoral Sul de Pernambuco, Luciano tem a areia da praia praticamente como quintal de casa, e descreve o desastre ambiental como um verdadeiro “absurdo”. “Já tínhamos visto alguns pedaços, às vezes nossos pés ficavam manchados… mas nunca do jeito que foi. Foi muito triste mesmo, um crime. Queremos explicações”, exigiu.

Durante o período de retirada das manchas de óleo, o Governo de Pernambuco distribuiu mais de 10 mil kits nutricionais através do programa Compra Legal, e outras 4.386 cestas básicas, fruto do programa Chapéu de Palha. No entanto, a representante da Articulação Nacional das Pescadoras, Joana Rodrigues Mousinho, de 64 anos, relata que os trabalhadores cadastrados no programa são a minoria. "Só os cadastrados no programa receberam auxílio, e são a minoria. Foi um prejuízo muito grande. Mudou muito a vida da gente, especialmente das mulheres. A gente ficou sem vender nada, a gente pescava só para comer. Até hoje estamos com esse efeito, nenhuma providência foi tomada", contou. A pescadora alega, também, que, trabalhando seis dias por semana, consegue ganhar um salário mínimo com a pesca, mas que sobreviveu apenas da sua aposentadoria durante a crise do óleo.

A liberação do banho em todas as praias de Pernambuco, em novembro de 2019, parecia o sinal de um recomeço para a categoria, que não esperava, no entanto, que uma pandemia fosse chegar até o Brasil em março de 2020, tornando a situação ainda mais difícil. "A pandemia foi outro inferno na nossa vida, estamos tentando nos levantar agora. Foi horrível, muito difícil. Hoje não, mas no começo da pandemia houve pescadores que chegaram a passar necessidade. Você já imaginou uma casa com seis, sete filhos, com uma mulher que vive de tirar ostra, sem poder vender?", indagou Joana, residente de Itapissuma, no Litoral Norte do Estado.

O estudo da Fundaj também revela foi identificada uma perda de faturamento médio de 29,9% em bares e restaurantes especializados em frutos do mar, enquanto nos demais a redução foi de 10,7%. Já a rede de hospedagem, 21,6% dos 29 estabelecimentos entrevistados realizaram alguma ação de marketing para superar o desastre. Em relação aos ambulantes, também alvo do estudo, 81,8% dos entrevistados sobrevivem dessa fonte de renda e 82,6% deles relataram que o petróleo atingiu uma das praias em que trabalham, fato que afetou a renda de 64,6% deles.

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