Atualizada às 19h
No pé da ponte do Pina, que leva a um dos bairros mais luxuosos da Zona Sul do Recife, palafitas se amontoam precariamente sobre o Rio Capibaribe. Os corredores sinuosos de tábua entre uma moradia e outra levam à casa onde Leidiane da Silva, de 25 anos, vive com o marido e duas filhas. Com uma recém-nascida no braço, ela mostra o interior da habitação que é feita de tábuas de madeira e papelão: “A gente não tem água, vive só pela graça de Deus. Como a maioria não tem banheiro, o esgoto é a maré”, descreve. A situação dessa e de 200 famílias da comunidade contrasta com arranha-céus de luxo na paisagem e compõe o quadro de concentração de renda da cidade que foi a mais desigual do País em 2019, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A Síntese de Indicadores Sociais 2020 (SIS), divulgada nessa quinta-feira (12) com os números do ano passado, levou em conta o índice de Gini - considerado referência para se aferir desigualdades e concentração de renda. O Recife marcou 0,612, no primeiro do ranking entre as capitais - posição que não ocupava desde 2016. Em 2018, o parâmetro era de 0,605. Já Pernambuco saiu de 0,534 para 0,573, sendo o terceiro estado com maior concentração de renda do País, atrás de Sergipe (0,580) e Roraima (0,576). A média brasileira é de 0,543.
Os dados também mostram que o contingente vivendo abaixo da linha da extrema pobreza avançou em Pernambuco e no Recife em 2019. No Estado, mais de 1,2 milhão de pessoas, ou 13% da população, viviam com renda mensal domiciliar per capita inferior a R$ 151 (US$ 1,9 por dia) - critério adotado Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza. A capital concentra cerca de 115 mil pessoas, ou 7% da população, nesta situação. No Brasil, a taxa foi de 6,5%.
O Nordeste apresentou o maior crescimento percentual do indicador entre 2012 e 2019 (2,4%) e foi a única região onde o Gini cresceu, entre 2018 e 2019, passando de 0,545 para 0,559. A região Sul tinha a menor desigualdade de rendimentos (0,467 em 2019). Dados são de antes da pandemia da covid-19.
De acordo com dados do Banco Mundial para o relatório World Development Indicators, o Brasil permanece como um dos mais desiguais do mundo quando se trata da distribuição de renda entre seus habitantes, sendo o nono país mais desigual do mundo nessa avaliação.
Leidiane faz parte da estatística. Na época, a renda que era dividida para toda família somava cerca de R$ 500 por mês. “Dá para comprar o alimento. Sobreviver. Hoje posso botar a carne no fogo, mas amanhã eu asso ovo”, conta. Além de receber R$ 171 pelo Bolsa Família, ela fazia bico coletando material reciclável e catando sururu, mas precisou parar para cuidar da nova filha. Nos últimos meses, o casal tem contado com o auxílio emergencial de R$ 600 do Governo Federal, “Deu uma melhorada, deu para comprar mais coisa para dentro de coisa. Mas é aquele negócio: nem tudo que é bom dura para sempre”, falou, antecipando o fim do benefício.
Moradora da comunidade há 10 anos, Maria José de Assis, 30 anos, conseguiu erguer uma casa com o valor do auxílio. O imóvel consiste em uma sala, um banheiro, uma cozinha e um quarto, onde dormem ela, o marido e os três filhos. O casal, que não são contemplados por outros benefícios sociais e costumavam ganhar de R$ 500 a R$ 600 com a pesca de sururu, tiveram a renda aumentada para R$ 1.200 nos primeiros meses de pandemia. O trabalho foi interrompido porque não tinham para quem entregar o insumo.
Mesmo com o valor extra, os outros desafios da pobreza persistem. Maria José se queixa do aumento dos preços da cesta básica. “Essa pandemia veio para desgraçar a vida da gente. Como é que a gente vai dar R$ 10 numa lata de óleo ou comprar um gás?”, levantou.
As condições de higiene também não mudaram muito com a nova moradia. “O esgoto é a céu aberto, não tem saneamento, não tem nada. Vivendo com os ratos, com as baratas”, disse. O drama foi sentida na saúde: ela e o marido tiveram coronavírus - o que ela atribui às condições de vida.
“Um rico pode comprar um álcool em gel. Pode ter uma higienização melhor. Onde é que aqui a gente vai ter higienização das coisas? Não tem como, minha gente. Infelizmente a gente está sujeito a pegar. Eu e meu marido pegou e eu tive que me tratar em casa. Não senti gosto, não senti cheiro, tive dor de cabeça, dor de garganta. Tive medo. Quem é a pessoa que não tem medo?
Assim como a família, 66,5% dos pernambucano que vive abaixo da linha da pobreza vive em domicílios sem saneamento básico. A pesquisa revelou que essa população tem menor acesso a outros serviços básicos: 28,6% têm ao menos uma precariedade nas condições de moradia, 38,8% têm dificuldade no acesso à educação, 47,1% não têm conexão à Internet e 9% não têm a cobertura de nenhum tipo de programa de proteção social.
O panorama vem se costurando há tempos, lembrou Fernanda Estelita, gerente de planejamento e gestão do IBGE no Pernambuco. “A gente tem visto ao longo dos últimos anos uma declínio das atividades econômicas, uma redução do PIB, e, nessa situação, os mais vulneráveis ficam ainda mais prejudicado”, contextualizou. Apesar de o Recife se destacar negativamente entre as cidades, não é uma particularidade local. “estava nessa mesma condição (de extrema pobreza)”, pontuou.
Na análise do ano de 2020, a previsão é de que indicadores podem seguir dois caminhos. “A gente tem dois movimentos acontecendo: tem um impacto da pandemia que foi muito forte, reduziu emprego, trouxe um trabalho mais precário para população e, com isso, diminuiu a renda. Mas teve o impacto positivo do auxílio emergencial, deu um fôlego, deu acesso a população mais vulnerável entrasse no mercado de consumo”, afirmou. “A gente vai ter que aguardar para ver qual dessas duas forças vai preponderar no balanço. Foi um ano atípico em relação ao que a gente tem nos últimos tempos”, finalizou.
Luiz Maia, professor de economia e finanças da UFRE, prevê um impacto significativo no aumento da faixa da pobreza, que corresponde à população com renda mensal de menos de R$ 436 reais por mês, ou US$ 5,5 por dia, pelo critério do Banco Mundial.
“A gente está vendo a taxa de desemprego saltar ao longo de 2020. Já subiu mais de 3 pontos percentuais. Já está chegando a um patamar muito alto. Com aumento desemprego, o que a gente tende a ver é mais pessoas na pobreza”, resumiu.
Eduardo Eugênio da Silva, 29, é uma dessas pessoas atingidas pelo desemprego. Antes da pandemia, prestava serviços informalmente como ajudante de pedreiro ou lustrador de móveis. “Dificuldade é muita. Com essa pandemia não aparece trabalho. Ficou mais difícil,”, falou o homem que há 9 anos mora em uma palafita nos bairros dos Coelhos, na área central do Recife. Eduardo foi contemplado pelo auxílio de R$ 600 nos últimos meses, dos quais manda R$ 200 a R$ 300 para os dois filhos. “Ajuda, mas não muito. Dá para fazer uma compra, pagar uma dívida, compra um negócio para as crianças”, contou.
O levantamento do IBGE constatou que, dos 631 mil pernambucanos desocupados em 2019, 14,6% procurava uma ocupação há menos de um mês, 31,6% de um mês a menos de um ano, 16,5% entre um ano e dois anos e a maior parte, 37,4%, há dois anos ou mais.
No ano passado, 51,742 milhões de brasileiros, ou 24,7% da população, estavam abaixo da linha de pobreza definida pelo Banco Mundial para países de renda média-alta. Esse contingente sobrevive com renda mensal de, no máximo, R$ 436 por pessoa do domicílio. Dentro desse grupo, os considerados extremamente pobres - com renda mensal de até R$ 151 por pessoa do domicílio - eram 13,689 milhões em 2019, 6,5% da população.
Na passagem de 2018 para 2019, o quadro mudou pouco. Três anos de baixo crescimento econômico entre 2017 a 2019, sempre abaixo de 2% ao ano, mantiveram a tendência de alta da pobreza, que cresceu fortemente com a recessão anterior à atual, de 2014 a 2016.
Em 2014, quando 22,8% dos brasileiros estavam abaixo da linha de pobreza definida pelo Banco Mundial para países de renda média-alta, menor proporção desde 2012, o contingente era de 45,817 milhões. De lá para o ano passado, 5,926 milhões passaram abaixo dessa faixa de pobreza, uma alta de 12,9% no período.
Também em 2014, os extremamente pobres eram 4,5% da população, ou 9,033 milhões de pessoas. Entre aquele ano e 2019, 4,656 milhões de brasileiros passaram a essa condição, um salto de 51,5%. De 2018 para 2019, foram 151 mil a mais na extrema pobreza.
As primeiras informações sobre a crise atual da covid-19, obtidas pela Pnad Covid, versão especial da pesquisa do IBGE desenvolvida para acompanhar os efeitos da pandemia, mostram redução da pobreza - medida apenas pela renda monetária, ou seja, não levam em conta outros aspectos, como patrimônio -, puxada pelo auxílio emergencial pago pelo governo federal aos trabalhadores informais de baixa renda. Em meio à pandemia, mais da metade da população foi beneficiada de alguma forma pelo auxílio emergencial. Essa queda da pobreza tende a ser temporária, ou seja, os brasileiros mais vulneráveis voltarão a ficar mais pobres quando o auxílio for extinto.
O estudo ressalta ainda outras formas de desigualdade, como o fato de a pobreza atingir mais as mulheres e as pessoas de pele preta ou parda. No caso da cor da pele, 56,3% do total da população se diz preto ou pardo, mas, entre os 13,689 milhões extremamente pobres, eles representam 76,7%.
"A pobreza atinge de forma mais forte as mulheres pretas ou pardas", afirma Bárbara Cobo, analista do IBGE.
Em termos regionais, 27,2% da população vive no Nordeste. No contingente dos extremamente pobres, mais da metade, ou 56,8% vive na região.
Antes mesmo de a pandemia aniquilar 14 milhões de vagas de trabalho, entre formais e informais, entre fevereiro e julho deste ano, o desemprego de longa duração já se espalhava pelos trabalhadores brasileiros. O Brasil é destaque mundial nesse quesito, segundo a SIS 2020.
Considerando dados de 2018 e a proporção de desempregados há um ano ou mais, o Brasil tem a quarta pior taxa, num ranking com países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as nações mais ricas do mundo. O País aparece atrás apenas de Grécia, Espanha e Itália.
Em 2019, 27,5% dos desocupados no Brasil estavam nessa situação há dois anos ou mais, segundo a SIS 2020.