Por Amanda Rainheri, especial para o JC
Primeiro, o sofá. Depois, uma cadeira de balanço e assim, um por um, todos os móveis da sala. Quem entra na casa de Rivanda Silva, 38 anos, encontra o vazio. Sem emprego, a dona de casa, que vive sozinha com os filhos Ariel, de 4 anos, e Mariana, de 6, foi obrigada a vender o pouco que tinha para garantir o mínimo: a alimentação das crianças. Antes da pandemia chegar a Trindade, no Sertão do Araripe, a dona de casa sustentava os filhos com o Bolsa Família. E era na escola que os pequenos faziam a principal - e às vezes única - refeição do dia. Mas o vírus transformou essa realidade. Além de perder o benefício do governo federal, os filhos de Rivanda ficaram sem alimentação por parte da prefeitura. A situação do município foi parar no Ministério Público de Pernambuco (MPPE), mas não é um caso isolado.
Segundo levantamento realizado pelo Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef), em parceria com a Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), 49% das crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas brasileiras não receberam alimentação da escola durante o período de fechamento das instituições devido à pandemia da covid-19. A pesquisa também aponta que, desde o início da pandemia, em 13% dos lares com crianças e adolescentes, os pequenos e os jovens deixaram de comer porque não havia dinheiro para comprar comida. No Nordeste, esse número chega a 16% das crianças e adolescentes matriculados na rede pública. A região é a segunda mais crítica no indicador, atrás apenas da região Norte, onde 20% deixaram de comer por falta de dinheiro. Os mais afetados pertencem às classes D e E, são pretos ou pardos e não estão ocupados.
Gente como Rivanda, Ariel e Mariana. "É desesperador para uma mãe acordar e não saber o que vai dar de comer aos filhos. Eu saí vendendo tudo o que podia, não tenho quase nenhum móvel mais. Cheguei a oferecer a geladeira, mas os vizinhos conseguiram uma doação e eu desisti. A gente tem vivido assim, de ajuda dos outros", desabafa a dona de casa. Entre as principais faltas está a merenda escolar. "Eles sempre comiam na escola e isso me deixava tranquila, mas quando as aulas acabaram por causa da pandemia, nem com isso a gente pode contar mais." Segundo Rivanda, em 2020, os kits de merenda escolar chegavam, em média, a cada dois meses. A situação piorou em 2021. Até a metade de junho, nenhum kit havia chegado aos alunos da rede pública de Trindade. Em oito meses, segundo a própria gestão municipal, os alimentos foram distribuídos apenas duas vezes.
Para Elenilda Alencar, 31, a situação só não foi mais difícil porque a família recebeu cinco parcelas do auxílio emergencial. "Foi uma ajuda grande, mas as coisas faltavam mesmo assim, porque o dinheiro não era muito e só de prestação da casa são R$ 250. Já teve dia de não ter o que comer", relata a dona de casa, mãe de Laísa, de 7 anos, e Leanderson, de 8. Géssica da Silva, 29, mãe de José, de 9 anos, recebeu o auxílio e também passou a ganhar R$ 140 de Bolsa Família no período. Ela lembra como a ajuda chegou nos primeiros meses da pandemia. "Chegaram uns três kits. Era pouca coisa - um quilo de arroz, café, um açúcar, um pacote de bolacha, um macarrão e um leite -, mas ajudava. Um dia simplesmente pararam de avisar para a gente ir buscar na escola. Só vinha a tarefa."
Após cobranças de respostas do município, foi da Câmara de Vereadores de Trindade que partiu a iniciativa de procurar o MPPE. "Fomos provocados pelo vereador Jaécio Sá, que alegava que o recurso para a merenda existia, mas os alimentos não estavam sendo fornecidos. O município argumentou que estava licitando a empresa para a distribuição. A licitação foi feita e o fornecimento regularizado", explicou Guilherme Goulart, promotor de Justiça de Trindade. Segundo ele, não foi encontrada nenhuma irregularidade ou fraude durante as investigações. O promotor explicou ainda que em casos de suspensão de serviços essenciais somente por má gestão, a legislação não prevê penalização ao município. Goulart também justificou a demora da atuação, reforçando que o MPPE só tomou conhecimento sobre a situação em Trindade no mês de maio.
No município, o primeiro kit com alimentos foi entregue no final de junho. Segundo Helbe Rodrigues, prefeita de Trindade, já foram realizadas duas distribuições aos cerca de 5,7 mil estudantes das 30 escolas da rede. "A prestação de contas de 2020 não havia sido feita, então ficou para a nossa gestão realizar a licitação para a compra da merenda, que não havia sido realizado na gestão anterior. Temos a verba em caixa. Somente para a primeira compra dos kits, foram R$ 160 mil."
OUTROS CASOS
O caso de Trindade não é único. Segundo o Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Defesa do Direito Humano à Educação (CAO Educação) do MPPE, mais de 40 Promotorias de Justiça noticiaram a abertura de procedimentos e/ou expediram recomendações sobre a questão da merenda escolar. "Os procedimentos visam acompanhar a execução das políticas públicas de alimentação escolar durante o período da pandemia, quando os estudantes não compareceram às escolas e, por tal razão, a oferta da merenda teve que ser repensada pelos municípios, com a oferta de kits mensais ou cartão de alimentação. Não é possível o MPPE afirmar, porém, se os alunos dos municípios alvos desses procedimentos estariam ou não em situação de insegurança alimentar", destaca, em nota.
Procurado, o Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE) informou que não realizou nenhum levantamento sobre o fornecimento de merenda, mas publicou, em abril de 2020, uma cartilha com boas práticas na distribuição durante o período da pandemia. O material está disponível no site do TCE.