Desapropriação de casas e falta de diálogo: o lado B da construção da Ponte Monteiro-Iputinga no Recife
A Prefeitura do Recife decretou a derrubada de pelo menos 58 casas na Comunidade Vila Esperança/Cabocó para construção da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão
Em meio a uma legião de altos e cinzas edifícios na Zona Norte do Recife, um oásis. Caminhar pelas ruas da Vila Esperança/Cabocó é como voltar no tempo. Crianças brincam nas calçadas. Cada vizinho conhece o outro. Fiteiros movimentam renda. Essa dinâmica já rara de acontecer em áreas valorizadas da cidade, todavia, pode estar prestes a acabar. A Prefeitura do Recife decretou a derrubada de 58 casas na comunidade, que é uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) - ou seja, protegida por lei -, para retomar construção da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão, que ligará o bairro do Monteiro até o da Iputinga, na Zona Oeste, sem ao menos manter uma comunicação transparente com a população local.
No último mês, a aposentada Raquel Dalzy foi surpreendida com agentes da gestão municipal marcando o muro de sua casa - onde nasceu, há 64 anos. “Eu disse que não estava à venda, e ele disse que não tinha problema”, contou. Mais do que um endereço, o lugar onde ela vive se confunde com a própria identidade. Raquel foi uma das pessoas que se mobilizou para levar água encanada e energia elétrica até a comunidade, de onde se recusa sair “pelo dinheiro que for”. “Quando o bairro começou a ser bem visto, quiseram botar a gente para fora. Onde iremos encontrar um ambiente como esse?”, questionou.
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E ela não é a única. Na região, paira um ar de preocupação entre os moradores. Isso porque, além de estarem ameaçados a deixar as casas, a eles ainda são oferecidos valores de R$ 15 mil a R$ 70 mil - inclusive por casarões que estão lá desde que o bairro era o Engenho São Pantaleão do Monteiro. É o caso da autônoma Lidiane Santana, que mora na Vila há 33 anos. “Cresci nesse casarão que nunca pôde ter a fachada pintada. Nunca pude modificar nada porque a Emlurb alegava que era tombado. Como podem agora querer passar um trator por cima?”, perguntou.
“A forma que fomos comunicados foi agressiva. Recebemos funcionários da prefeitura avisando que iriam marcar a casa porque iríamos sair daqui. Foi um impacto. Quando a gente fala em trabalhar por uma cidade melhor, não podemos escolher um ou outro ponto. Tudo é prioridade. Temos um problema seríssimo de mobilidade no Recife, mas também devemos falar em saúde, educação, moradia, e essa obra, apesar de atender bem a população, vai realocar e mexer em toda dinâmica da comunidade”, reclamou o taxista Wellington Lira, que mora há 57 anos na Vila.
Por nota, a Prefeitura do Recife esclareceu que o “processo de negociação para a realização das desapropriações foi apenas iniciado”, e que cada morador está sendo convidado para conversar e receber a proposta de valor a ser pago. Destacou, ainda, que “imóvel é avaliado individualmente e recebe um valor que varia de acordo com questões como existência de documentação legal, área construída e benfeitorias realizadas pelos moradores e que não foi estabelecido um teto máximo para a avaliação”.
Alegando falta de comunicação com a gestão, moradores encontraram neste mês decreto do dia 28 de maio de 2021 a permissão para que a Autarquia de Urbanização do Recife (URB) realizasse a desapropriação em caráter de urgência, devendo “apurar todos os débitos tributários passíveis de compensação com o valor da indenização, nos termos da legislação em vigor”, e que “na hipótese de desapropriação judicial”, deveria “ser depositado o valor integral da indenização, fazendo-se posteriormente a compensação”. A comunidade convocou reunião com representantes da pasta na última quinta-feira (16), que acabou sem muitas respostas ou nova data marcada.
A Prefeitura do Recife, por outro lado, diz que “denúncia sobre a falta de diálogo com os moradores da Zeis Vila Esperança-Cabocó não procede”, que todas as casas “demarcadas receberam visita de integrantes da equipe social” antes de fazer duas reuniões em julho com representantes, uma em setembro e mais outra na última semana, quando apresentou “o projeto executivo da Ponte e o plano de desapropriação dos imóveis”.
A proteção sobre as ZEIS
Desde 1994, a Vila Esperança/Cabocó é considerada uma ZEIS - ou seja, uma “área de assentamento habitacional de população de baixa renda, surgido espontaneamente, existente, consolidado ou proposto pelo Poder Público, onde haja possibilidade de urbanização e regularização fundiária”, segundo a lei sancionada pelo então prefeito Jarbas Vasconcelos (MDB). Este caráter prioriza o direito de moradia na área, e inibe a especulação imobiliária, entre outras características.
A Diretora Executiva Nacional da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, Socorro Leite, explica que a prefeitura tem sim o poder de retirar essas pessoas de onde moram por se tratar de uma obra pública - fator que foi reiterado por nota pela URB. No entanto, esse processo deveria ser pensado e discutido com a comunidade antes mesmo da obra ser retomada, por meio de negociações que levassem em conta as preferências dos moradores.
“Por ser uma Zeis, isso deveria ser discutido com a comunidade e deveria se buscar uma solução que fosse uma nova moradia construída perto de onde as famílias moram, e não uma indenização, que é um valor muito baixo já que as casas não têm a posse da terra regularizada. Essas famílias vão possivelmente morar na periferia, saindo de um bairro valorizado, onde têm relações de trabalho instituídas, acesso a equipamentos, transporte e tudo mais por não conseguir comprar uma casa por ali”, disse a especialista.
Para impedir a derrubada, ainda nesta semana uma comissão formada por moradores da ZEIS levará o caso até o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e ao Tribunal de Contas do Estado (TCE). Uma das integrantes é a professora e geógrafa Cecília Rocha, de 32 anos, que cresceu na Vila com a família, uma das mais antigas da área.
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“A gente não quer vender, nem sair. Por enquanto, o movimento é resistir. Estamos dando entrada nessa semana no MPPE e também vamos denunciar no TCE. Não queremos protesto, nem barulho, queremos ir pelos meios legais. Há outras opções: por que não ampliar a Ponte da Salvação, por exemplo, que é só para pedestres, ao invés de construir uma nova? Não encontramos o projeto nem o orçamento; queremos ter acesso a isso. Também não fomos consultados ou avisados”, denunciou.
Não é a primeira vez que a construção dessa ponte causa problemas habitacionais. Em 2012, no início das obras, 400 famílias tiveram de deixar o local em 45 dias. A gestão de João da Costa (PT) prometeu, à época, dois habitacionais, um na Iputinga e outro no Monteiro - insuficientes para a quantidade de pessoas desabrigadas. Quem não conseguiu um apartamento recebe um auxílio-moradia no valor de R$ 200 até hoje. O equipamento - importante para o sistema viário da capital por conectar rapidamente as zonas Norte e Oeste, segundo especialistas consultados pela coluna Mobilidade - ficou emperrada nas duas gestões do prefeito Geraldo Júlio (PSB) após a prefeitura considerar que foi feita de forma equivocada, e retomada neste mês.
Do outro lado, na Iputinga, há mais casas marcadas. Na área, contudo, ao contrário da Vila Esperança/Cobocó, moram pessoas em vulnerabilidade social, que já vêm recebendo o auxílio para desocupá-la. “Ajeitei minha casa todinha, ia botar cerâmica, e de repente vou voltar para o aluguel. Já chorei, já não tenho mais lágrimas. Foi um baque. Todas as nossas economias foram para fazer essa casinha e de repente vamos vê-la no chão”, lamentou Luziara Maria, 48, que trabalha com reciclagem. A procura por um novo lar está difícil, porque ela e o marido, o carroceiro Nelson Gomes, 62, só encontraram casas por pelo menos R$ 400.
O drama se repete na vida do carpinteiro Severino Ramos, 66. “Eu não queria sair daqui mais nunca, moro aqui há mais de 5 anos. Todo mundo se conhece, a vida aqui é tranquila, não tem maloqueiragem. Nos deram auxílio-moradia de R$ 200, mas onde tem casa com esse preço? Tem nem um barraco. Vou esperar eles derrubarem com a gente dentro, é o que posso fazer”, relatou.