INSEGURANÇA

Duzentas pessoas foram baleadas dentro da própria casa no Grande Recife de janeiro a setembro de 2021, aponta Instituto

Medidas de controle à pandemia da covid-19 e flexibilização do porte de armas teriam sido fatores que facilitaram o crescimento do número de vítimas, segundo o Instituto Fogo Cruzado

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Katarina Moraes, Cássio Oliveira

Publicado em 29/09/2021 às 8:55 | Atualizado em 29/09/2021 às 14:15
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Após passar o dia temendo o crime, o alívio ao chegar em casa pode ser considerado uma das melhores sensações que existem. Na Região Metropolitana do Recife, no entanto, nem entre quatro paredes a população parece estar segura. Prova disso está em um mapeamento do Instituto Fogo Cruzado, que revelou que 200 pessoas foram baleadas dentro da própria casa entre o início do ano e essa terça-feira (28).

Os dados ainda preocupam mais quando comparados aos do ano passado, quando esta marca foi atingida apenas em 1º de dezembro, dois meses depois. Até o momento, já são 157 pessoas mortas (79%) e 43 (21%) feridas em suas residências este ano. Esse foi o maior índice desde o início da operação do Instituto em Pernambuco, em abril de 2018. A média de baleados também assusta: 22 por mês.

O estudo aponta que parte do aumento ocorreu devido às medidas de controle à pandemia da covid-19, que "criaram um ambiente que permitiu o crescimento do número de vítimas dentro de casa". "Esses dados demonstram que os tiros tinham um alvo. Seja um acerto de contas, dívidas, brigas, ou mesmo a proximidade entre as vítimas, tudo isso pode ser motivação para esses crimes", analisou o Instituto.

Outro fator que teria contribuído para o cenário seria a flexibilização do porte de armas, segundo o Fogo Cruzado. Dados dão conta de que em 2020, as solicitações para posse e porte de armas em Pernambuco aumentaram 8 vezes em comparação a 2018. "O resultado é o aumento da violência, tanto nas ruas quanto em casa, prova disso é que oito em cada 10 homicídios foram praticados com arma de fogo".

Enquanto isso, a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco (SDS-PE) esbanja dados positivos. No último dia 15 de setembro, apontou redução de 12,6% no índice de homicídios no acumulado em relação a 2020, de 7,5% no número de vítimas de violência doméstica em agosto - e estabilidade no número de feminicídios -, além de 6,35% de baixa nos crimes de roubo. Em nota à imprensa, não foram destacados os números de assassinatos ocorridos dentro de casa.

Por nota, a pasta informou desconhecer "a metodologia e a base de dados da referida pesquisa", e que "as forças de segurança pública de Pernambuco têm trabalhado de forma incansável para reduzir a criminalidade no Estado, o que tem se verificado com a diminuição dos índices de homicídio".

Perfil

Ainda de acordo com o Fogo Cruzado, os homens foram os mais atingidos pela violência armada. Ao todo, 166 foram baleados em casa. Outras três vítimas não tiveram o gênero identificado. As mulheres, apesar de serem as menos afetadas, foram 16% do total dos atingidos em casa. Pesquisa mostrou que elas tiveram que lidar com outro tipo de violência, a doméstica. Das 31 mulheres atingidas por bala em 2021, cinco foram vítimas de feminicídio ou tentativas de feminicídio. Além disso, três gestantes foram baleadas dentro de casa.

Estar na terceira idade ou ser menor de idade tampouco foi garantia de proteção. Entre os 200 baleados, 12 eram adolescentes e seis idosos. Destes, nove jovens e todos os idosos morreram.

Recife concentrou a maior parte das vítimas atingidas dentro de suas casas. Ao todo, houve 61 baleados no município. Em seguida, entre os cinco municípios com mais vítimas, estão Jaboatão dos Guararapes (32), Cabo de Santo Agostinho (31), Olinda (18) e Paulista (14).

Gajop

Em entrevista à Rádio Jornal, na manhã desta quarta-feira (29), Edna Jatobá - socióloga e coordenadora do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) - comentou os números e disse que o Estado deveria investir em inteligência para evitar que pessoas "marcadas para morrer" sejam assassinadas. 

"Mesmo nós, que mapeamos esses números todos os dias, ficamos assustados. No Rio de Janeiro, esse número em 2020 não passou de 31 pessoas baleadas, já na Região Metropolitana do Recife, no último ano, foram 212 pessoas baleadas. Agora, não terminamos setembro e temos 200 pessoas baleadas. Isso fala do crescimento da violência, dos crimes de proximidade, da motivação, como dívidas, conflitos criminosos, feminicídios, que estão aumentando no Recife e em Pernambuco, são questões para ficar de olho", disse. "Pessoas vêm sendo ameaçadas, precisa investir em inteligência para prevenção de mortes de vulneráveis, de pessoas egressas do sistema prisional. Há registro de que em alguns lugares há lista de pessoas marcadas para morrer. É preciso mapear essas pessoas ameaçadas e reforçar as ações de prevenção", completou Edna.

A socióloga defendeu a necessidade de campanhas que ajudem a população a refletir das consequências de brigas por contas de som alto, por exemplo, brigas em casa e outros casos de violência por proximidade. Ela explica que quando o crime ocorre em uma residência, choca a população local e causa sensação de insegurança. "Uma coisa é nas ruas outra coisa é na residência. Em plena pandemia, pessoas evitavam ir às ruas, ficaram em casa para se proteger do vírus e a violência letal infelizmente cresceu. Fica a sensação de insegurança, as pessoas percebem que nem em casa estão seguras", disse.

Por fim, a especialista criticou investidas do governo Jair Bolsonaro para facilitar a posse e o porte de armas de fogo no País. Bolsonaro publicamente defende o armamento da população, afirmando que a sociedade estaria mais segura. Edna discorda. "O governo não pode ser mais um a gerar a violência. Quando vemos iniciativas que visam desmantelar o estatuto do desarmamento, houve crescimento da posse e do porte de armas de fogo em Pernambuco. A arma é um grande vetor da violência. Pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 78% das mortes violentas são por arma de fogo. Então, não quero aprender a conviver com arma, o governo federal precisa entender que arma não significa segurança, significa mais violência e mais mortes", concluiu.

Sobre o Fogo Cruzado

O Instituto Fogo Cruzado usa tecnologia para produzir e divulgar dados abertos e colaborativos sobre violência armada, fortalecendo a democracia através da transformação social e da preservação da vida. O laboratório de dados da Instituição produz mais de 20 indicadores inéditos sobre violência nas regiões metropolitanas do Rio, do Recife e, em breve, em mais cidades brasileiras.

Por meio de um aplicativo de celular, o Fogo Cruzado recebe e disponibiliza informações sobre tiroteios, checadas em tempo real. Elas estão disponíveis no único banco de dados aberto sobre violência armada da América Latina, que pode ser acessado gratuitamente pela API do Instituto.

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