Atualizada às 14h30 do dia 06.06
Dois dias após a chuva ter varrido a comunidade beira rio, no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife, distante cerca de 11 quilômetros da prefeitura da cidade, o prefeito João Campos (PSB) esteve no local. O cabelo bem penteado e a roupa engomada destoavam do que estava ao redor: um cenário de terra arrasada, com acúmulo de metralha das partes destruídas de casas, restos de roupas, móveis e pertences dos moradores. Em frente à câmera de um celular, o gestor foi diligente: "A prefeitura vai estar junto de todas as famílias que tiveram prejuízo", prometeu. Como e quando a ajuda viria passaram a ser detalhes.
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Esses "detalhes" não foram esquecidos pela primeira vez no Recife. A Autarquia de Urbanização da cidade (URB) até hoje mantém em andamento ou ainda a serem executadas obras prometidas desde 2012, para áreas como o Ibura (região com dezenas de mortes nos últimos dias em Jardim Monte Verde e Milagres), e até mesmo a própria Várzea, e que não foram concluídas.
As obras atrasadas fazem parte de um pacote de R$ 150 milhões, que tinham previsão entre um ano a um ano e três meses para serem finalizadas, mas agora contam com prazos até 2023 e sequer têm garantia do dinheiro necessário. Juntas, as intervenções em atraso somam R$ 119,7 milhões, de acordo com o Ministério de Desenvolvimento Regional.
As construções de contenções de encostas fazem parte de um conjunto de ações dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) voltado especificamente para as áreas de morro, no âmbito do que, na época, era o Ministério das Cidades e, agora, passou a ser o Desenvolvimento Regional. O Termo de Compromisso firmado entre o município e o governo federal data de 2012, ou seja, dez anos atrás, mas contratações das obras foram todas feitas entre os anos de 2017 e 2019, ainda na gestão do então prefeito Geraldo Julio (PSB), que chegou a 2020, fim do mandato, com apenas 12% da conclusão delas.
Mais dois anos se passaram e, sob o comando de João Campos (PSB), ainda há previsão para que parte das entregas atrasadas só seja feita em 2023.
Desde 2013, a URB trabalha na contratação de projetos e obras para 102 áreas de risco do Recife, com R$ 150 milhões em recursos federais destinados a "otimizar a execução das obras de contenção, drenagem, muros de arrimo e escadarias". Dos lotes de obras, divididos em 12 ao todo, ainda constavam como "em andamento", em ofício enviado pela URB ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE), no primeiro trimestre deste ano, os lotes quatro; cinco; seis; sete; oito; nove; dez; onze e doze.
Para além dos números, revelam-se atrasos em obras de contenção de encostas para bairros como o Ibura - que foi arrasado pelos últimas chuvas; Várzea; Passarinho; Nova Descoberta; Dois Unidos; Guabiraba; Brejo da Guabiraba; Jordão; Vasco da Gama; Linha do Tiro; Beberibe e Córrego do Euclides - cada lote corresponde a intervenções em grupos de 10 a 28 localidades da cidade.
Mais do que a chuva fora do normal para o que se via nesta época do ano, a falta de preparo para enfrentar intempéries passa a ser o destaque desta que já é a maior tragédia em número de mortes em mais de meio século. O andamento a passos lentos das obras fez com que uma auditoria do TCU, em 2020, já classifica-se "ausência de prioridade do gasto público em ações de prevenção de desastres" no Recife.
"Observou-se que decorridos quase oito anos da celebração do termo de compromisso (2012), apenas a etapa 1 (lotes 1, 2 e 3) encontra-se concluída, o que corresponde a 12,15% de execução física do empreendimento, caracterizando afronta ao princípio da eficiência", assinalou o TCU.
Havia ainda mais problemas. Em 2020, a etapa 2 (lotes 4 e 5) tinha a programação de desembolsos financeiros do MDR (prevista para 48 meses) diferente da programação financeira estabelecida pela prefeitura para os contratos já firmados (12 meses), "colocando em risco a efetiva conclusão da etapa a curto prazo". As demais parcelas das obras (etapas 3 a 5 - lotes 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12) permaneciam naquele ano sem qualquer previsão de início e finalização.
"Serão obras definitivas e em várias partes da cidade. A previsão é que em 90 dias, após todo o processo de licitação, as obras já possam ser iniciadas e, algumas delas, serem concluídas durante o verão deste ano. Muitas famílias já terão a segurança necessária no próximo inverno", destacou o então prefeito Geraldo Julio em agosto de 2017 ao anunciar a empreitada.
O próximo inverno, em 2018, chegou; as obras, não. E foram parar no TCU justamente após a morte de 12 pessoas no inverno de 2019 na capital pernambucana. As mortes seguiram acontecendo rotineiramente a cada chuva que, para o poder público, não deveria cair. Mas os esforços em torno de ações preventivas esgotaram-se rapidamente, assim como os vagos anúncios em meio à tragédia.
Somando-se todos os lotes de obras para proteção de encostas apontados pela própria prefeitura como ainda em andamento, chega-se ao total de R$ 106 milhões em valores inicialmente pactuados em contrato (sem levar em conta os aditamentos ou contrapartidas do município). Atualmente, o MDR já assume um total de R$ 119,7 milhões nessas obras que ainda estão em andamento ou nem foram iniciadas nos morros da capital.
Além do aumento do valor, houve aumento no prazo de entrega, que no contrato inicial variava de um ano a um ano e três meses, no máximo.
No último trimestre de 2022, a prefeitura demonstrou que o repasse de recursos foi de apenas de R$ 3,3 milhões, sendo R$ 1.061.351,59 pagos no trimestre para execução das obras no lote 4 (licitado em 2017, com obras iniciadas em 2019 e previsão de entrega apenas para setembro deste ano), e R$ 2.316.853,80 para o lote 5 (licitado em 2017, com obras iniciadas em 2020 e previsão de entrega para fevereiro de 2023, ambos dentro da etapa 2 do projeto, a única que atualmente está em execução na cidade e recebendo recursos do governo federal.
As demais etapas seguem sem previsão para autorização do início das obras. Apenas a etapa 1 foi concluída até então.
Prefeitura fala sobre as obras
A reportagem do JC entrou em contato com a Prefeitura do Recife e a questionou sobre o detalhamento de cada obra, compreendida nos lotes, em atraso ou finalizada; o porquê do repasse minguado dos recursos federais e a aplicação da contrapartida da gestão local; além das alternativas e adequações feitas pela URB para conseguir realizar as entregas pendentes. A prefeitura do Recife, no entanto, não respondeu a nenhuma das questões.
Em coletiva de imprensa, na última sexta-feira, o prefeito João Campos (PSB) disse que iria pedir o repasse dos recursos restantes ao governo federal. Em nota, a prefeitura disse apenas que para este ano foi ampliado o orçamento de outro programa (Ação Inverno) em 50%, "totalizando mais de R$ 148 milhões em recursos".
"Além disso, especificamente para garantir obras nos morros, a gestão municipal lançou, em abril, o Plano de Encostas, assegurando investimentos na ordem de R$ 40 milhões em toda a cidade somente neste ano", pontua a prefeitura em nota. Desse total, R$ 20 milhões já estão em execução com 24 obras em andamento.
Embora tenha sido questionada pela reportagem do JC antes e não tenha enviado resposta sobre as obras atrasadas, a Prefeitura do Recife informou nesta segunda-feira (6) que do convênio assinado em 2012, que totaliza R$ 150 milhões, ainda não chegaram as verbas referentes aos lotes 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, apesar de os projetos já estarem prontos e aprovados pela Caixa Econômica. "O valor não liberado é superior a R$ 74 milhões e a Prefeitura reforçou o pedido de liberação imediata. Já os lotes 4 e 5 receberam recursos federais apenas em 2020, três anos após a conclusão dos processos licitatórios", destaca em nota.
A gestão ainda esclarece que "a solução encontrada pela gestão municipal tem sido viabilizar a execução das obras com recursos próprios e oriundos de financiamento. Por exemplo, todas as obras do lote 9 foram concluídas desta forma. Desde 2021, a Prefeitura vem executando o Plano de Ajuste Fiscal, o que vem permitindo liberar mais de R$ 100 milhões de custeio para investir em ações e obras prioritárias em toda a cidade, a exemplo de medidas de combate a covid-19 e benfeitorias na infraestrutura urbana, especialmente em morros. Todo esse trabalho de eficiência da máquina pública também permitiu que o Recife melhorasse a sua nota de crédito junto à Secretaria do Tesouro Nacional (STN), na Capacidade de Pagamento (CAPAG), depois de dez anos, subindo de “C” para “B”, em abril deste ano. Com isso, o Recife pode acessar linhas de crédito e de financiamento em órgãos nacionais e internacionais, com taxas de juros menores, maior carência para início dos pagamentos e prazos para amortização. Diante disso, desde o ano passado, a gestão municipal já vem elaborando projetos de obras estruturadoras e captando recursos via operações de crédito, ampliando ainda mais a carteira de investimento na cidade".
A Prefeitura do Recife informa ainda que, com a frustração de receitas por parte do Governo Federal, incrementou sua participação em obras de infraestrutura, aportando oito vezes mais do que estava previsto em programas como Ação Inverno 2022, Programa Parceria, Plano Encostas e outras medidas estruturadoras. "Assim, muitas das obras que estavam em andamento e tiveram sua execução desacelerada, no início do ano, foram retomadas com o aporte da gestão municipal".
A PCR ressalta ainda que "o planejamento orçamentário na gestão pública de todo o ano é elaborado com base em projeções e expectativa de receitas, despesas, custeios, captações, dentre outras rubricas, entre os meses de julho e agosto do ano anterior. Em 2021, a Prefeitura do Recife tinha a expectativa de receber mais recursos via convênios com o Governo Federal e captações para realizar os desembolsos neste ano de 2022, o que parte não se confirmou por parte da União. Entretanto, a Prefeitura do Recife não poupou esforços e compensou parte dessa frustração de receitas com o aumento da fonte de recursos próprios aplicados em urbanização de áreas de risco".