Consultor de Tecnologia da Informação, Claudio Marinho fala de como está vendo a discussão sobre os dados por causa da pandemia do coronavírus. Ex-secretário estadual de Ciência e Tecnologia, ele diz que as tecnologias digitais serão mais incorporadas ao dia a dia, e as pessoas vão passar a ter mais informações sobre o mundo dos dados.
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JORNAL DO COMMERCIO – O rastreamento mostra que viramos um grande big brother?
CLAUDIO MARINHO – As grandes empresas privadas já fazem isso. Temos cinco grande plataformas digitais verticais de infraestrutura, que são o Google, a Microsoft, a Apple, o Facebook e a Amazon. Não há possibilidade nenhuma de qualquer um de nós, cidadãos, trabalhadores, donos de empresa, sairmos de casa e chegarmos ao trabalho, ou melhor dizendo, ficar em casa nestes tempos de quarentena, sem passar por uma dessas plataformas. O que está acontecendo agora, e as pessoas estão reclamando, sem nenhuma razão, é que os governos, para enfrentar a pandemia que ameaça a todos, estão usando os mesmos mecanismos. Quando, por exemplo, a Prefeitura do Recife contrata os serviços da In Loco, uma das empresas do Porto Digital que trabalha com georreferenciamento de informações, para ver aglomerações de pessoas indevidas nesse tempo de distanciamento social, não está fazendo outra coisa diferente do que as grandes empresas já fazem com a nossa vida.
JC – Como assim?
CLAUDIO – Quando nós autorizamos o iFood para saber onde estamos e ver qual o restaurante mais próximo, estamos fazendo isso sem qualquer reclamação. No momento em que precisamos saber onde há aglomerações, que nos ameaçam a vida, como o caso dessa pandemia, as pessoas começam a dizer “estão invadindo a minha privacidade”. Não faz nenhum sentido. Essa privacidade, que eles consideram que existe, não existe mais nas plataformas que nós mesmos autorizamos. Eu estou dando o exemplo do iFood, posso dar o da Netflix, qualquer uma que autorizamos. Essas iniciativas (do poder público) repetem o que nós próprios como cidadãos estamos autorizando no dia a dia.
JC – Passada a pandemia, esses dados podem ser usado para outros fins?
CLAUDIO – Essa é uma discussão relevante pós-covid-19, que deve ser feita agora. Como nós vamos sair dessa crise? Vamos usar mais as plataformas digitais, que vão se incorporar ao dia a dia. O que os governos podem fazer com esses dados entra em outra discussão, que é sobre democracia. É um outro debate. Uma coisa é saber como eu me movimento para ter uma informação importante para a saúde pública. Outra é saber com quem eu me encontrei, aí é uma questão política. O que nós temos receio, e aí procede, é que esses instrumentos sejam usados para controle político. Aí é uma discussão de democracia, e é importante que a imprensa, as comunidades, associações e partidos levem em conta essa possibilidade, porque ela existe.
JC – De que maneira a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) poderia barrar o mau uso dessas tecnologias?
CLAUDIO – A LGPD trata de respeitar a privacidade. A discussão do que é privado é o mais relevante numa democracia. Eu agir de forma privada em interesse próprio, ferindo os interesses da sociedade, isso precisa ser acompanhado e precisa ser controlado. E não há nenhum mecanismo novo pra fazer isso a não ser os mecanismos constitucionais que já existem e fazem a proteção da minha privacidade e a proteção do meu direito, quando fere o direito do outro. O que se quer é que se apliquem esses direitos e deveres constitucionais no mundo digital. Nossos políticos e a sociedade têm que estar atentos a esse debate. Temos uma democracia conquistada com a luta de muita gente, que está instituída nos nossos direitos e deveres constitucionais. O que precisa é ter um cumprimento, uma fiscalização e supervisão desses direitos.
JC – Há quem teme virarmos uma China, com, entre outras coisas, controle do governo sobre cidadãos...
CLAUDIO – Não, absolutamente. A China é uma ditadura diferente – comunista que tem características do capitalismo às vezes –, é muito mais avançada do que a gente conhece, como por exemplo com relação ao investimento em tecnologia e inovação. Mas é uma ditadura. E nós somos uma democracia, com uma robustez necessária para atravessar esses desafios, com o novo normal digital que vai surgir no pós-covid. Já temos os instrumentos para isso, só precisam ser usados (referência à Constituição).
JC – Nas eleições de 2018, ocorreu uma onda de fake news. Como o senhor enxerga a próxima eleição nesse cenário digital pós-covid-19?
CLAUDIO – Estamos numa condição de subutilização dos mecanismos e ferramentas digitais para o controle democrático do nosso processo eleitoral. Em resumo: os governos brasileiros, em todas as instâncias, estão menos equipados do que os partidos ou candidatos ou empresas para a utilização dessas plataformas digitais para o bem. Para o mal – que foi o caso de gerar fake news para eleger um presidente como o (Donald) Trump (EUA), ou como o caso da última eleição no Brasil, que criou uma indústria de fake news em 2018 –, como democracia, estamos menos equipados do que esses grupos de interesse. Se posso falar assim, a herança benigna da crise da pandemia é o fato de que os governos caíram na real de que devem utilizar com a mesma intensidade essas plataformas para coleta de dados de big data (dados), analytics, de inteligência artificial para o bem, para o controle das iniciativas que ferem o direito do cidadão, como o direito a sua escolha, por exemplo, de um candidato com informação segura, não de desinformação. Vamos sair dessa crise com mais condições de controle sobre as fake news para a eleição, por exemplo. E mais consciência da utilização desses dados, inclusive do que não pode ser feito.