O pedido de demissão do ministro da Justiça e Segurança,Sergio Moro, não foi o primeiro, mas foi o mais ruidoso episódio de uma série de interferências diretas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre órgãos do governo federal ligados a investigações e controle interno desde o início do mandato, em janeiro de 2019. E de longe o que mais mexeu nas estruturas do governo.
Antes de, nas palavras do ex-juiz, exigir a troca do diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo (tido como braço direito de Moro), Bolsonaro acumulou polêmicas por manifestar publicamente a intenção de trocar integrantes da Receita Federal e de tirar de Moro a gestão do Conselho de Atividades Financeiras (Coaf). Ter o Coaf sob a asa do ministério da Justiça foi um pedido do próprio ministro, que julgava imprescindível manter sob seu controle os dados sobre movimentações financeiras de acusados de corrupção e do crime organizado.
Mesmo a simples nomeação de uma conselheira suplente no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) foi motivo de interferência direta de Bolsonaro. Em fevereiro de 2019, incomodado com a reação de sua base de apoiadores à nomeação da pesquisadora Ilona Szabó (identificada como sendo desarmamentista), o presidente ordenou que Moro revertesse a nomeação, o que foi feito.
Mas foi na Polícia Federal que o assédio do presidente foi mais voraz. Em agosto de 2019 Bolsonaro já falava em trocar Maurício Valeixo, bem como os superintendentes da PF no Amazonas e no Rio de Janeiro. Tudo à revelia de Sergio Moro. No mesmo mês, em um evento que reuniu empresas do setor de siderurgia, em Brasília, afirmou, numa referência às eventuais trocas na Receita e na PF, “fui (eleito) presidente para interferir mesmo, se é pra ser um banana ou um poste, tô fora”.
Para um delegado federal aposentado e que já ocupou cargo na diretoria geral da PF, o episódio da demissão de Maurício Valeixo não deixa dúvidas da ingerência forçada do presidente sobre a corporação. “Uma troca dessa importância jamais é feita com o presidente assinando um ato sem ter conversado com o ministro. Na história da Polícia Federal também não existe a exoneração de um diretor que não venha acompanhada da nomeação do substituto imediato, dada a importância do cargo. Foi uma ação totalmente fora do protocolo”.
Para ele, outros atos de Bolsonaro também denotam interferência direta na instituição. “As trocas das superintendências nos Estados são feitas pelo diretor geral, não costumam sequer passar pelo ministro da Justiça”. Bolsonaro deixou claro que gostaria de mudar os atuais superintendentes no Rio de Janeiro, Carlos Henrique de Oliveira Souza, e de Pernambuco, Carla Patrícia Cintra, mas não afirmou os motivos.
Para o cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Pedro Villas Boas Castelo Branco, a interferência na Polícia Federal teria relação com inquéritos envolvendo familiares de Bolsonaro e, ao mesmo tempo, o protagonismo político de Sergio Moro. “Ele nunca deixou de carregar a imagem de herói da Lava Jato. E todos os que se tornam protagonistas no governo de Bolsonaro tendem a sentir o peso da caneta, como aconteceu com o ministro (da Saúde)Luiz Henrique Mandetta”. Segundo ele, Bolsonaro tende a subverter as estruturas de poder para proteger a própria família de investigações incômodas.
O professor de relações internacionais da Unicap, Thales Castro, alega que Bolsonaro elegeu como prioridade operar sobre um mapa de poder onde gravitam os órgãos de controle e investigação. “Ele até tem prerrogativa para fazer certas mudanças na administração. As perguntas que têm de ser feitas são: com que finalidade? Quem se beneficia com isso? Quem perde?”
Entidades judiciais e policiais reagiram mal à interferência do presidente na Polícia Federal. A presidente do Fórum Nacional de Juízes Criminais (Fonajuc), Rogéria Epaminondas, magistrada no Estado do Acre, afirmou que “ameaças à independência das polícias, do Ministério Público e do Poder Judiciário resultaram na lei de abuso de autoridade, na mitigação do pacote anticrime, na retirada do Coaf das mãos da Polícia Federal e em outras interferências políticas, que sucederam a operação Lava Jato”.
Em nota, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) afirma que “diante dos fatos apresentados pelo ministro, é urgente que o Ministério Público e o Judiciário, em especial a Procuradoria Geral da República, aprofundem as investigações sobre a existência de potencial conflito de interesse e improbidade administrativa na nomeação de pessoas ligadas ao presidente para cargos-chave do setor de segurança pública, e que têm impacto sobre denúncias contra figuras ligadas à presidência da República”.
A Associação dos Delegados de Polícia do Estado de Pernambuco (Adeppe) se posicionou pela autonomia para as polícias judiciárias, a fim de impedir interferências na gestão das corporações. “Vemos que está mais do que na hora de as Polícias Civis e Federal terem autonomia. Seus dirigentes precisam ter mandato para evitar ingerências políticas. É importante fortalecer o cargo de delegado e dar a ele mais garantias, como a inamovibilidade”, enfatizou o presidente da Adeppe, Bruno Bezerra.
A entidade defende que seja retomado no Congresso Nacional o projeto de lei 474/2017, que estabelece mandato de dois anos, permitida uma recondução, ao diretor-geral da Polícia Federal e das Polícias Civis. “Evitaria esse quadro de insegurança institucional na gestão das Polícias Civis e Federal de nosso país e preservaria politicamente as políticas governamentais de eventuais polêmicas relacionadas a mudanças de quadros na direção de tais corporações, tal como ocorre recorrentemente em diferentes governos”, frisa Bezerra.