Caixões enterrados vazios, medicamentos milagrosos que curam a covid-19, pessoas encontradas vivas em sacos funerários em meio à pandemia e mais um sem-número de informações falsas relacionadas ao surto do coronavírus se tornaram rotineiras nas redes sociais e aplicativos de compartilhamento de mensagens desde que os casos da nova doença começaram a se multiplicar ao redor do mundo. Essa situação, porém, não é uma exceção. A facilidade de disseminação de notícias que a internet proporcionou à nossa sociedade trouxe consigo uma chaga que, no Brasil, o Congresso Nacional tem tentado sanar: a desinformação.
O parlamento brasileiro e especialistas das áreas do direito, tecnologia e comunicação, contudo, não estão conseguindo chegar a um consenso sobre a melhor forma de combater esse problema. Enquanto isso, dezenas de propostas para resolver ou ao menos minimizar a questão se acumulam na Câmara e no Senado, entre elas o projeto da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (PL 2630/2020), feita pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) em parceria com os deputados federais Tábata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES). O texto chegou a ser pautado para votação na última terça-feira (2), mas a polêmica causada pelo vazamento da minuta do parecer do relator do texto, senador Angelo Coronel (PSD-BA), provocou o adiamento da votação.
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Em seu relatório, Coronel incluiu na proposta, entre outras coisas, a exigência de RG e CPF para usuários de redes sociais e a possibilidade desses sites e aplicativos removerem materiais considerados enganosos por verificadores independentes (fact-checkers). Todos esses pontos acabaram saindo do projeto inicial, mas não sem antes causar muito barulho dentro e fora do Congresso.
Através de nota assinada por organizações como Google, Instagram e Fecomércio-SP, a Coalizão Direitos na Rede afirmou que o texto de Coronel “subverte o propósito inicial de discussão de critérios de transparência na Internet – que já trazia preocupações –, restringindo liberdades individuais e podendo dar margem à censura e à violação de direitos fundamentais dos cidadãos”.
O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), por sua vez, recomendou ampliação e aprofundamento dos debates sobre o tema “antes que matéria de tamanha relevância para a garantia das instituições democráticas do País seja votada”.
Em entrevista à Rádio Senado na última sexta-feira (5), Alessandro Vieira disse que o Senado decidiu retirar da proposta seus pontos mais controversos, mas deixou claro que as medidas criticadas por essas entidades já são adotadas atualmente por empresas como o Facebook, por exemplo. “Hoje, as plataformas das empresas já fazem a mediação de conteúdos e, com base nisso, suspendem contas, derrubam conteúdos, fazem o tarjamento de conteúdo desinformativo. Fazem isso inclusive com o presidente da República. O projeto de lei apenas pegava essa situação, regulamentava e dava direito de defesa para o cidadão, o que não acontece atualmente.”
A previsão de Vieira é que o projeto seja posto em pauta novamente no início desta semana, já ajustado. Segundo o senador, o foco da proposta é a identificação de pessoas e empresas que cometem crimes usando o ambiente virtual. “Para combater o crime é necessário criar condições para que isso aconteça. É preciso que a Justiça chegue aos criminosos. Só esse ano o Facebook já derrubou 1 bilhão de contas por conduta inautêntica. São necessárias políticas para que essas empresas tirem essas contas do ar”, disse o parlamentar. Caso seja aprovada, a proposta seguirá para a Câmara antes da sanção presidencial.
Gustavo Artese, professor de Direito e Tecnologia da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e sócio da Viseu Advogados, defende um debate mais amplo sobre a matéria, envolvendo sobretudo as empresas que atuam como plataformas para redes sociais e aplicativos de mensagem. “Na minha visão, é preciso que as decisões acerca desse tema não passem apenas por questões jurídicas, legislativas, mas envolvam também os meios que propagam essas notícias. Não que essas empresas sejam as causadoras do problema (notícias falsas), mas são o meio pelo qual o problema trafega. Elas têm um papel importante nesse debate, pois pode ser que com as ferramentas técnicas adequadas elas consigam mitigar esse problema de forma bastante razoável”, declarou.
Editor-chefe do Comprova, projeto colaborativo de checagem de notícias do qual o JC faz parte, Sérgio Lüdtke disse acreditar que as questões contidas no projeto em tramitação no Senado precisam, sim, ser esmiuçadas e discutidas, mas pondera que muito provavelmente o parlamento não conseguirá, sozinho, resolver a questão das fake news. “Tem coisas no projeto que precisam ser debatidas, como o financiamento de máquinas criadas para derrubar reputações ou produzir desinformações que vão causar danos, mas eu não acho que a gente vai ter respostas para todas essas coisas. Nós temos um problema recente que inundou a sociedade muito de repente e é muito complexo. O debate é importante, mas tem que trazer outras coisas, tem que falar de educação e de valorização da imprensa, pois o jornalismo pode ser uma vacina contra isso”, explicou.