Na casa de Jeferson não tem banheiro. Um pequeno balde de margarina vazio é usado para recolher o xixi. 'Privacidade' para defecar ele só consegue em um cubículo de madeira construído do lado de fora do barraco. O espaço coletivo não tem privada. É preciso acocorar sobre um saco plástico para fazer as necessidades e depois atirar o 'pacote' no lixo. Na casa de Cristiane tem pia, chuveiro e vaso sanitário mas, sem água encanada, o banho, a lavagem da louça e a descarga do banheiro nunca deixaram de ser de cuia. Na casa de Josinete, a comida fica 'escondida' dentro de tonéis tampados para não ter que ser disputada com os ratos. Na casa de Bruna, as crianças ficaram eufóricas com a novidade: por conta da pandemia da covid-19, quatro pias - com água jorrando das torneiras - foram instaladas bem em frente ao barraco da família. Moradores da Comunidade do Pilar, no Bairro do Recife, Jeferson, Cristiane, Josinete e Bruna habitam um Brasil inominável, atrasado, excludente. Um País que precisa acelerar os investimentos para garantir o direito constitucional básico da população à água e esgoto.
O novo marco legal do saneamento é a atual aposta do governo federal para universalizar a cobertura. As diferenças em relação a outras leis que também tinham o mesmo propósito são a maior abertura do setor à iniciativa privada, a definição de metas e o modelo de regulação. "A diferença agora é que o novo marco está baseado em três pilares: melhora da regulação, por meio da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA); mais competição, por meio do fim dos contratos de programa com as companhias estaduais de água, que agora terão que se submeter a uma licitação pública e a regionalização, juntando municípios grandes com pequenos em blocos para que todos tenham viabilidade na prestação do serviço", detalha o presidente da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), Percy Soares Neto. Hoje só 6% dos contratos de saneamento estão com empresas privadas.
Nos últimos anos, os indicadores do setor andaram muito aquém do tamanho do déficit. "O Brasil vinha avançando desde 2007, mas num ritmo muito lento para o tamanho do desafio nessa área. Nós ainda temos que levar coleta de esgoto para quase metade da população. Esses indicadores têm evoluído em menos de um ponto percentual nos últimos 8 anos. Se continuar nesse ritmo, nós levaríamos 50 anos para universalizar só a coleta de esgoto e o tratamento mais ainda. Mesmo na água potável, que avançou mais, a gente estacionou em 83% da população desde 2010", destaca o presidente do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos.
Os investimentos também andaram em descompasso com a demanda e chegaram majoritariamente em regiões onde o saneamento já está avançado. "O Brasil tem aplicado, em média, de R$ 12 bilhões a R$ 13 bilhões por ano, mas esses investimentos são muito pequenos. Pelos dados da nova lei, o ideal seria R$ 30 bilhões por ano. Isso sem falar que um terço dos recursos fica em São Paulo, enquanto a região Norte só tem 10% de coleta de esgoto. É um descaso nacional, um quadro sanitário caótico, com lugares sem nenhuma estrutura sanitária em pleno século 21", analisa Édison Carlos.
Vera Rita da Silva, 65 anos, mora na Comunidade do Pilar há 14 anos. Recentemente ela foi retirada da casa onde vivia e se mudou para outra. A moradia não tem muita diferença, é um pequeno barraco como a outra. A vantagem está no banheiro com privada, ainda que não tenha água. "Aqui no Pilar, quem tem um banheiro é rico. Passei os últimos quatro anos sem banheiro. Colocava um saco na boca de um filtro, sentava e defecava. Agora estou no paraíso, deixo o meu banheiro bem limpinho e com baldes cheios de água. Todo mundo precisa de dignidade", conta.
Cansadas de encher baldes em uma torneira da comunidade e ter que carregar até as casas, as mulheres da comunidade decidiram improvisar uma lavanderia coletiva. Instalaram uma mangueira em um bico de água e colocaram uma espécie de lona no chão. Ali lavam louças e roupas.
Também contam com a ajuda de um tanquinho de lavar roupa, encontrado no lixo pelo marido de Cristiane, mas que foi consertado e está funcionando. "É assim que a gente vai se ajudando. Não ter briga por causa da mangueira. Cada uma vem em um horário ou espera a outra terminar", diz Janaína de Oliveira, de 23 anos, que mora na comunidade desde criança e hoje divide uma casa com sua companheira.
Jeferson tem o nome da mãe - Josinete - tatuado no peito. Diz que é uma homenagem. Mora com ela e mais sete sobrinhos em um barraco e lamenta as condições da família. "Eu não gosto de fazer minhas necessidades dentro de casa porque fica o mau cheiro. Prefiro usar esse 'quartinho' da comunidade. A gente enche os tonéis que ficam aí dentro e tomamos banho. Se tivesse banheiro e água na torneira, era melhor. A gente precisa carregar vários baldes por dia", queixa-se.
A pandemia do novo coronavírus colocou à prova infraestrutura de água e saneamento dos municípios. Como obedecer os protocolos sanitários se o País tem famílias sem pia nem banheiro? O vírus trouxe quatro pias para a comunidade do Pilar. Bruna Yane, 23 anos, conta que foram instaladas desde o início da pandemia. "Moro aqui há 6 anos e ninguém chegou para resolver nosso problema de água e esgoto. Nós instalamos uma privada por conta própria, mas não tem esgoto. Cansamos de usar o penico e o pombo (termo usado nas comunidades quando jogam as fezes na rua num saco)", desabafa.
Questionada sobre a população do Pilar, a Compesa informou que "o projeto para implantação do sistema de esgotamento sanitário da área já está pronto e as obras devem ser realizadas entre 2021 e 2023, como parte integrante do Programa Cidade Saneada, desde que a localidade possua uma infraestrutura básica mínima para que a Compesa possa operar a rede coletora de esgoto. Com relação ao abastecimento de água, a Compesa informa que a área possui rede de distribuição, sendo abastecida todos os dias", afirma, em nota.