Perto de completar 75 anos, em 1º de novembro, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu antecipar em algumas semanas sua aposentadoria da Corte. Assim, será aberta uma das vagas do tribunal mais importante do país, a partir da próxima terça-feira (13). Sua saída coincide com outra sucessão decisiva na Suprema Corte dos Estados Unidos, após a morte de Ruth Ginsburg. Nos dois países teme-se um possível ponto de inflexão com essas sucessões, o que pode determinar o tom de decisões futuras.
Exemplos desta independência, os juízes Dias Toffoli e Joaquim Barbosa, ambos indicados pelo ex-presidente Lula (PT), julgaram de forma desfavorável ao ex-presidente em questões criminais. O último, inclusive, foi considerado "algoz” do petista e seu partido no julgamento do mensalão.
Embora não seja garantido que o novo ministro atuará em pleno acordo com os desejos de Bolsonaro, a professora de Direito Constitucional do UniFBV Renata Dayanne considera que a aposentadoria de Celso de Mello deve deixar um vácuo de liderança no Supremo em um momento que a Corte tem servido de contraponto à gestão Bolsonaro. Em junho, o decano disse ser "inconcebível que ainda sobreviva no íntimo do aparelho de Estado brasileiro um resíduo de forte autoritarismo" ao responder as ameaças do presidente e de seus ministros de que o governo poderia descumprir decisões do tribunal.
Para Renata, ainda que Marques tente se desvincular de Bolsonaro após sua posse, ele não teria condições de exercer esse papel de liderança devido à sua inexperiência no Supremo. Já os dois ministros mais experientes da Corte, Marco Aurélio — que será o novo decano do STF, até sua aposentadoria em julho de 2021 — e Gilmar Mendes, não têm o perfil agregador de Celso de Mello, afirma ela.
"Ao longo dos anos, Celso de Mello sempre foi muito respeitado pelo mundo jurídico, graças aos votos e posicionamentos muito bem fundamentados, além de ter um comportamento discreto. Assim, a primeira mudança no equilíbrio de forças que sua saída provoca é justamente a perda irreparável, pela Corte, dessa figura de autoridade moral que, ao longo do tempo, ele construiu", acredita a professora.
Para além desse impacto institucional que a troca de ministros trará para a Corte, a aposentadoria de Celso de Mello abre vaga na Segunda Turma do Supremo, colegiado que julga os recursos do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), filho do presidente, no caso das rachadinhas. Nela também, será julgado o habeas corpus impetrado por Lula, que pede que seja considerada suspeita a atuação de Sergio Moro como magistrado nos casos contra o petista. Caso o recurso de Lula seja aceito, suas condenações pelo ex-juiz serão anuladas, o que devolveria ao ex-presidente seus direitos políticos e a possibilidade de disputar eleições.
O nome do novo membro do colegiado, no entanto, é desconhecido, porque ainda não é certo, porém, se o novo ministro irá para a Segunda Turma, ou para a Primeira. Isso porque, as regras da Corte preveem que ministros da Primeira Turma possam pedir transferência para a vaga aberta antes da posse do novo juiz. A prioridade da migração, por um critério de antiguidade, seria do ministro Marco Aurélio Mello.
O próximo decano, porém, sempre criticou esse tipo de mudança e tem sinalizado não ter interesse em fazê-la, deixando aberta a possibilidade para o ministro Dias Toffoli regressar ao colegiado, de onde saiu para assumir a Presidência do tribunal em 2018.
No início de setembro, Toffoli deixou o comando do STF e foi ocupar na Primeira Turma a cadeira do ministro Luiz Fux, que o sucedeu na liderança do tribunal. Mas o magistrado têm demonstrado interesse em ocupar a vaga de Celso de Mello na Segunda Turma. Se o ex-presidente da Corte assume o posto, se repetirá uma situação do início de 2017. À época, diante da morte do ministro Teori Zavascki, o ministro Edson Fachin migrou da Primeira para a Segunda Turma, ocupando a vaga deixada por Zavascki. Por sorteio, Fachin ainda ficou com a relatoria da Lava Jato, assim como o ministro que ele substituía.
Formadas por cinco ministros cada uma, as turmas têm poder para decidir casos particulares, que, segundo o regimento interno do tribunal, não precisam ser votados pelo plenário completo. Por isso, as atenções se voltam para as novas composições dos colegiados.
Durante o tempo que ocupou uma cadeira na Segunda Turma, o decano foi voto decisivo na maioria dos julgamentos do colegiado, ora compondo maioria com os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia, de perfil mais rigoroso na aplicação da lei penal, os chamados punitivistas, ora ficando ao lado dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, que têm atuação mais garantista, ou seja, que dão maior peso aos direitos dos réus em seus votos. “O ministro Celso foi, ao longo de todos esses anos, um ponto de equilíbrio, não só na Turma, mas na Corte como um todo. Com votos muito bem construídos, ele não deixava claro se era mais conservador ou mais progressista, como devem fazer os bons juízes”, pontua o presidente da seção pernambucana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE), Bruno Baptista.
Se Toffoli assume a cadeira, é possível afirmar que a Segunda Turma tenda a ter maioria de garantistas e conceda o HC a Lula contra Moro. O mesmo, porém, ainda não se pode afirmar de uma possível entrada de Kassio Marques no colegiado. “O desembargador Kassio e suas decisões ainda não são tão conhecidos. Além disso, dada à própria natureza da Justiça Federal, ele julgou poucos casos no que se refere aos costumes e ao Direito Penal. Portanto, ainda é cedo para dizer se é um juiz garantista", diz Baptista.
Além de ter a possibilidade de chegar à Segunda Turma, pelo regimento interno do STF Marques deve herdar todos os processos e investigações relatados por Celso de Mello. Entre esses casos está o inquérito aberto pela Procuradoria-Geral da República para investigar se Bolsonaro atuou para interferir na Polícia Federal, conforme disse Moro, ao se demitir do Ministério da Justiça em abril.
Isso só não acontecerá se o presidente do STF, Luiz Fux, determinar a redistribuição do caso para um dos outros dez ministros da Corte, logo após a aposentadoria de Mello, antes que Kassio tomar posse. A medida poderia ser adotada para evitar que o novo ministro já chegue ao Supremo enfrentando desconfianças sobre sua atuação em uma investigação contra aquele que o indicou à Corte.
“Acredito que esse é o correto a se fazer, mas se o ministro Fux não o fizer, o indicado de Jair Bolsonaro deveria, ao receber sua toga, se declarar impedido de julgar qualquer ação relacionada ao presidente”, defende a professora Renata Dayanne.