A declaração do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nesta segunda-feira (18) sobre uma eventual prerrogativa das Forças Armadas de decidirem sobre a implementação da ditadura ou da democracia no Brasil tem um teor questionável, avaliam especialistas da Ciência Política e do Direito Constitucional ouvidos pelo JC.
Bolsonaro adotou o antigo discurso direcionado aos seus apoiadores na saída do Palácio da Alvorada, em um momento de crise em que o governo federal é cobrado por sua responsabilidade no combate à pandemia da covid-19 e de mais um capítulo briga política com o governador de São Paulo João Doria, que conseguiu o feito de realizar a primeira vacinação no País já no domingo (17).
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"Quem decide se um povo vai viver numa democracia ou numa ditadura são as suas Forças Armadas. Não tem ditadura onde as Forças Armadas não apoiam. No Brasil, temos liberdade ainda. Se nós não reconhecermos o valor desses homens e mulheres que estão lá, tudo pode mudar", disse o presidente.
Não há qualquer previsão na Constituição Federal sobre o uso das Forças Armadas para desvirtuar o princípio democrático, argumenta o advogado e professor de Direito Constitucional Marcelo Labanca. Esse princípio, inclusive, é considerado por ele como um dos mais importantes da Carta Magna.
"Em uma República, toda autoridade deve exercer o poder para o interesse público sempre abaixo da Constituição. Qualquer atuação de autoridades públicas (inclusive das forças armadas) para objetivos diferentes daqueles constitucionalmente previstos significa, na prática, um desvio de finalidade do poder", afirmou.
Labanca classificou a fala do presidente como "ameaçadora", pois vai de encontro a confiabilidade das instituições democráticas. "Ainda bem que as Forças Armadas sabem, hoje, que o seu papel é aquele estabelecido na Constituição, e não o de dar golpes. O Brasil deve andar pra frente. Pra frente. Tenho certeza absoluta que essa fala dele não é ecoada pela corporação militar, que é muito ciente de suas responsabilidades democráticas", afirmou.
Bolsonaro já citou por diversas oportunidades o artigo nº 142 da Constituição em meio a momentos de crise. O texto diz que as Forças Armadas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Criou-se uma tese em torno desse artigo de que Forças Armadas tem o papel de mediação de conflitos entre os três poderes e de uma eventual intervenção militar. Essa interpretação é considerada equivocada pelo meio jurídico, e repudiada por instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Para a cientista política e professora da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho) Priscila Lapa, esse viés de flerte com a ditadura militar norteia a visão de mundo do presidente desde antes da época em que era deputado - devido a sua formação nas Forças Armadas - e é utilizado no seu discurso a qualquer tempo, a depender das pressões externas sofridas e a necessidade de reanimar a militância bolsonarista.
"Independentemente se ele usa isso politicamente, ele de fato tem essa visão a partir da sua própria formação política. Ele vem de um berço militar, onde você tem muito claramente essas questões colocadas de forma de que essa versão que ele tenta estabelecer. É estranho para nós, grupos da sociedade, que se constituíram fora desse meio e que veem todo esse processo histórico da ditadura militar de forma crítica", afirmou.
Essa prática, aponta Priscila, é adotada sempre que o presidente se sente ameaçado. Segundo ela, ao mesmo tempo que não devem ser vista como uma estratégia elaborada, as falas do presidente também não são despretensiosas.
"Eu não acho que ele tenha muita clareza sessa questão de convocar as Forças Armadas e de alguma forma acabar com a normalidade democrática, mas eu também acho que na cabeça dele isso não é algo impossível. O que existe é a tentativa de criar um clima político que respalde de alguma forma isso, rememorando fatos históricos", disse.