Tuíte engana ao sugerir que vacina contra a covid-19 é desnecessária

Pesquisas indicam que parcelas pequenas da população foram infectadas pelo novo coronavírus. Assim, se uma vacina surgir e for eficaz, ela pode servir para proteger grandes contingentes da população
JC
Publicado em 21/10/2020 às 16:12
Conteúdo viralizou no Twitter Foto: PROJETO COMPROVA


Conteúdo verificado: Postagem no Twitter afirma que quando a vacina contra covid-19 for desenvolvida, “a maior parte das pessoas já terá contraído a doença” e a imunização não será mais necessária.

É enganoso um tuíte do perfil intitulado “Médicos pela Liberdade” afirmando que quando a vacina contra a covid-19 for desenvolvida “a maior parte das pessoas já terá contraído a doença” e, por isso, ela não será mais necessária. Embora ainda não seja possível apontar quando a imunização estará disponível e qual será sua eficácia, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que, na maioria dos países, menos de 10% da população foi infectada pelo novo coronavírus até o momento. Isso significa que as pesquisas com a vacina são importantes pois, se tiverem resultado positivo, podem ajudar a imunizar grandes contingentes da população.

No Brasil, a mais recente fase da pesquisa Epicovid-19 BR, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), apontou prevalência de 1,4% de infectados na população, em um retrato de desaceleração da pandemia ao final de agosto.Mesmo em Manaus, onde uma pesquisa coordenada pelo Instituto de Medicina Tropical de São Paulo (IMTSP) e pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) indicou que 66% da população na cidade pode ter sido infectada desde o início da pandemia, a vacina continuará sendo importante, segundo a coordenadora da pesquisa, a imunologista e pesquisadora Ester Sabino, que foi ouvida pelo Comprova. Isso porque a capital amazonense ainda teria 33% da população suscetível ao Sars-CoV-2, e também porque não se sabe quanto tempo dura a imunidade de pessoas que já contraíram a doença.

Outro trecho da postagem afirma que se a doença não conferir imunidade, a vacina provavelmente também não irá garantir. Flávio Guimarães da Fonseca, virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas (CT Vacinas) e pesquisador do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explicou em entrevista ao Comprova que a resposta imune induzida pela vacina é diferente da provocada pela própria infecção, principalmente em relação à eficácia e à longevidade. Ele ressaltou que a ciência ainda busca respostas sobre a atuação do novo coronavírus no sistema imunológico, mas que há uma “chance muito grande” de que o efeito da vacina seja melhor do que a imunização causada pela doença.

O Comprova fez contato com o perfil “Médicos pela liberdade” por mensagem no Twitter. O canal respondeu questionando a legitimidade do trabalho de agências de checagem e se recusou a repassar quais seriam as fontes das informações sustentadas na postagem verificada.

Como verificamos?

Iniciamos a verificação do conteúdo consultando publicações do perfil “Médicos pela Liberdade” no Twitter e um vídeo de apresentação do grupo em um canal do YouTube, além de pesquisas no Google de conteúdos divulgados pela conta. Recorremos ao cadastro de inscrições do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e do Conselho Federal de Medicina (CFM) para confirmar a inscrição do médico Carlos Henrique Oliva, que no vídeo de apresentação se identifica como integrante do grupo. Também enviamos mensagem privada no Twitter para o perfil.

Para checar a procedência das afirmações feitas na postagem, buscamos, por meio de consulta ao Google, dados e pesquisas que apontassem a soroprevalência de pacientes infectados por covid-19 no Brasil e no mundo. Chegamos a uma estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) presente em um discurso do diretor-geral Tedros Adhanom do último dia 12 de outubro, que indicava a média de menos de 10% da população na maioria dos países.

Consultamos também outras pesquisas, como a Epicovid-19 BR, da Universidade Federal de Pelotas, o inquérito sorológico feito pela prefeitura de São Paulo e a pesquisa coordenada pelo Instituto de Medicina Tropical de São Paulo (IMTSP) e pela Faculdade de Medicina da USP. Entrevistamos por e-mail a pesquisadora responsável pelo estudo do IMTSP e FMUSP.

Também entrevistamos o virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas e pesquisador do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Flávio Guimarães da Fonseca, sobre a relação entre a imunidade causada pela doença e a que deve ser gerada pela vacina, e o médico infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 20 de outubro de 2020.

Verificação

O tuíte verificado afirma que “quando ela (a vacina) for desenvolvida, a maior parte das pessoas já terá contraído a doença e não precisaremos mais dela”. No entanto, dados e fontes consultados pelo Comprova apontam que a maior parte dos países ainda está longe de ter a maioria da população infectada pelo vírus.

Ainda não é possível indicar quando a vacina estará disponível para a população. Sobre a segunda parte da afirmação verificada, que sustenta que a maior parte das pessoas já terá contraído a doença quando a imunização estiver desenvolvida, dados apontam que isso ainda está distante de ocorrer na maioria dos locais. Em discurso feito à imprensa no último dia 12 de outubro, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, afirmou que “pesquisas de soroprevalência sugerem que na maioria dos países, menos de 10% da população foi infectada pelo vírus da covid-19.”

No mesmo comunicado, o diretor-geral da OMS destacou também que a maioria dos infectados desenvolve imunidade nas primeiras semanas, mas que “não sabemos quão forte ou duradoura é esta resposta imunológica, ou como ela age em pessoas diferentes”. Adhanom lembrou ainda que já houve registros de reinfecção pela covid-19.

No Brasil, um dos estudos de maior abrangência, que buscou medir a prevalência de pessoas já infectadas no país foi a pesquisa Epicovid-19 BR, da Universidade Federal de Pelotas.

Na terceira fase da pesquisa, em junho, a média entre as cidades pesquisadas apontava prevalência de 3,8% de população já infectada no país e, na quarta fase, no fim de agosto, de 1,4%. Nas regiões, o percentual de infecção variou de 0,5% (Sul, Centro-Oeste e Sudeste) a 2,4% (Norte).

Nesta quarta fase, as cidades com o maior percentual de pessoas que haviam sido infectadas foram Juazeiro do Norte, com 8%, e Sobral, 7,2%, ambas no Ceará, conforme divulgado em setembro no site da UFPel.

No entanto, o estudo identificou que os anticorpos detectáveis pelos testes duram apenas algumas semanas. Com isso, pessoas que foram infectadas há mais tempo passaram a ter resultados negativos nas últimas pesquisas. Isso faz com que o dado não represente o total de brasileiros que já tiveram contato com o vírus desde o início da pandemia, mas aponte o percentual de pessoas infectadas recentemente – o que mostrou uma desaceleração da pandemia na maior parte do país, segundo esta última fase da pesquisa.

O estudo alerta que o fato de os anticorpos caírem ao longo do tempo não significa que as pessoas deixam de estar protegidas porque “os organismos guardam memória imunológica para produzir anticorpos rapidamente em caso de uma nova infecção”. O tempo de duração da imunidade em pacientes já infectados ainda é alvo de estudos científicos.

Uma pesquisa coordenada pelo Instituto de Medicina Tropical de São Paulo e pela Faculdade de Medicina da USP, divulgada em setembro, estimou que Manaus já poderia ter atingido 66% da população infectada pelo coronavírus e São Paulo, 22,4%. A pesquisa se baseou em anticorpos da covid-19 presentes em doadores de sangue e também está analisando a prevalência de infectados no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador e Curitiba.

Mesmo nesses locais com maior incidência de pessoas já infectadas, como Manaus, a vacina continua sendo fundamental, conforme informou a imunologista e pesquisadora Ester Sabino, que coordenou a pesquisa do IMTSP e FMUSP, em resposta por e-mail ao Comprova. A informação da especialista desmente a afirmação da postagem verificada, de que a vacina não seria mais necessária quando a maioria das pessoas estiver infectada.

“Mesmo para Manaus 33% das pessoas ainda são sensíveis ao vírus e podem contrair a doença. Também não sabemos quanto tempo dura a imunidade das pessoas que se infectaram, portanto há uma necessidade muito grande de vacinas”, afirmou.

O médico infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, reforça que o tempo de duração da imunidade de quem é infectado ainda é desconhecido.

“A vacina, mais do que ser uma ferramenta de controle imediato da doença, é um controle a longo prazo, porque a gente não sabe por quanto tempo após uma infecção a pessoa fica imune. As inverdades da afirmação (verificada): lógico que existe um impacto da imunidade individual que gera essa imunidade coletiva ou de rebanho, isso contribuiu para o controle da doença porque você tem menos pessoas suscetíveis, mas você não zera o risco de pessoas mais vulneráveis adquirirem a doença e virem a óbito”, aponta.

O professor afirma que a mortalidade da covid-19 é de 10 a 15 vezes maior do que a da influenza, que possui política de vacina anual no país. “Se a gente seguir a lógica da influenza, a gente vai precisar de vacina (contra a covid-19)”, compara.

Imunidade da vacina

Outro trecho da publicação sugere que a vacina poderia não funcionar ao fazer uma relação com a proteção obtida por quem já pega a doença: “E se a doença não conferir imunidade? A vacina provavelmente também não”. No entanto, especialistas explicam que há diferenças entre esses dois tipos de imunização.

Apesar de ainda haver dúvidas sobre a imunidade trazida pela doença, a resposta imune induzida pela vacina é diferente da que é conferida pela própria infecção, sobretudo em relação à eficácia e à longevidade. Enquanto um vírus — como o Sars-CoV-2 — dispõe de várias proteínas que enganam o sistema imunológico do organismo, a vacina não carrega esse componente.

Qualquer imunizante possui elementos do vírus, mas este costuma ser usado na forma desativada. Assim, é incapaz de confundir o organismo. “Na vacina, tudo que temos são antígenos e componentes que induzem uma maior resposta imune”, explica Flávio Guimarães da Fonseca, virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas e pesquisador do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais.

O especialista reforça que a situação é incerta, já que a ciência ainda busca respostas sobre a atuação do vírus contra o sistema imunológico. Fonseca considera, porém, que a chance de a vacina representar um avanço na prevenção ao novo coronavírus é bastante alta.

“Dá para garantir, com 100% de certeza, que as vacinas terão uma resposta imune diferente da que é gerada pela doença. Não dá para garantir que essa resposta será melhor, mas existe uma chance muito grande”, afirma.

Julio Croda, da Fiocruz e UFMS, acrescenta que a imunização da vacina também dura um tempo específico, e, ainda, não está associada a um custo, que seriam os óbitos causados quando um grande número de pessoas precisa se infectar para garantir a chamada imunidade coletiva.

“A magnitude de qualquer vacina que tenha pelo menos uma eficácia igual à da influenza, de 70%, e que você possa vacinar todo ano, tem um impacto enorme”, aponta.

Médicos pela liberdade

O perfil “Médicos pela liberdade” se define na descrição do Twitter como “grupo em prol das liberdades individuais e contra o totalitarismo disfarçado de ciência”. Em um vídeo de agosto deste ano, publicado no canal do Youtube, o médico psiquiatra Carlos Henrique Oliva diz que faz parte do grupo, criado por “quatro ou cinco médicos” que se revezavam em publicações no Twitter, e que um grupo de Whatsapp foi criado e teria “de 150 a 200 participantes”. Afirma também que alguns integrantes não se manifestariam por receio de represálias.

No vídeo, ele chama o novo coronavírus de “vírus chinês”, termo popularizado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e faz críticas à mídia e a “alguns governadores” que, segundo ele, não estariam “respeitando a divergência”. Carlos Henrique Oliva aparece como médico com inscrição principal no Conselho Regional de Medicina de São Paulo e secundária no Conselho Regional de Medicina do Paraná, ambas ativas. Nesses cadastros, não há menção a especialidades do profissional.

O perfil também já fez publicações criticando o uso de máscaras e o isolamento social – que são outras medidas defendidas por especialistas e autoridades da área da saúde para prevenir a transmissão da Covid-19. Além de criticar a vacinação obrigatória, a página já saiu em defesa do ideólogo Olavo de Carvalho, que foi considerado o “guru intelectual” do governo Bolsonaro e chegou a afirmar que “a pandemia do novo coronavírus não existe”.

Por que investigamos?

Nesta terceira fase, o Comprova verifica conteúdos relacionados a políticas públicas do governo federal e à pandemia do novo coronavírus. Conteúdos que questionam a necessidade de uma vacina e defendem o controle da covid-19 apenas por meio de uma imunidade coletiva, adquirida via infecções causadas pelo vírus, podem incentivar um comportamento que descumpra as normas sanitárias como distanciamento social e uso de máscara, até agora as principais medidas para controlar a disseminação da doença, segundo os estudos científicos.

A postagem do “Médicos pela Liberdade” no Twitter teve 2,1 mil curtidas e 522 retuítes até as 16h do dia 19 de outubro de 2020.

O Comprova já verificou conteúdos falsos e enganosos que questionavam a necessidade de vacinação contra covid-19 para pessoas com menos de 35 anos, insinuavam que a China não iria utilizar a própria vacina , alegavam que as vacinas poderiam causar danos genéticos e monitorar a população e diziam que um projeto de lei previa a prisão da população que não tomar vacina contra covid-19.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos, que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Texto produzido pelo Comprova, coalizão de veículos de imprensa para verificar conteúdo viral nas redes sociais. Investigado por: O Estado de S. Paulo e NSC. Verificado por: Correio, Revista Piauí, GZH, A Gazeta, Marco Zero Conteúdo, Diário do Nordeste, Band News FM e Folha de S. Paulo.

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